As fendas estão de volta – e são janelas de sensualidade na moda
Ninguém resiste à sedução desses cortes estratégicos que tão bem destacam os contornos femininos
“O passado é uma sequência de momentos, cada um deles perfeito. Uma conta no colar do tempo. Como quando a vi pela primeira vez.” E o que a voz calma e pausada do cientista Nick Bannister (Hugh Jackman) proclama ter visto pela primeira vez. Corta para Mae, cantora interpretada pela atriz Rebecca Ferguson no recém-lançado filme Caminhos da Memória. Ela veste um longo vermelho colado ao corpo e marcado por uma fenda generosa. Impossível não congelar o olhar no modelo, nas infinitas pernas. Fendas têm poder. Elas enfeitiçam. Não é por outra razão que essas aberturas na vestimenta feminina que tanto sucesso já fizeram estão de volta. Depois de um extenso período no qual as formas estiveram cobertas pelos moletons do home office, os cortes estratégicos feitos nas partes lateral, traseira ou frontal de vestidos e saias abrem novamente espaço à sensualidade.
Seja no cinema, seja nos recentes desfiles de moda, e deles para as ruas, as fendas ganham destaque. Elas apareceram na coleção do estilista americano Tom Ford e foram aposta da mais recente edição da São Paulo Fashion Week — batizada com o tema Regeneração. É o que se busca. O estilista Reinaldo Lourenço, dono de um dos cortes mais refinados do país, entende as vastas aberturas como símbolos de libertação. “Não só da pandemia, mas das amarras do corpo”, diz. E, diferentemente de anos anteriores, hoje elas são permitidas a todos os manequins. “Acabou a ditadura do tamanho 36. Todas as mulheres podem usar fendas porque, além de lindas, são a expressão do empoderamento feminino”, acrescenta.
E que empoderamento! Em Nova York, Jennifer Lopez parou o Baile do Metropolitan Museum of Art com o fabuloso modelo Ralph Lauren marrom. Fenda e decote estavam assimetricamente tão perfeitos que as pernas e os seios de JLo apareciam apenas o suficiente para provocar. Recentemente, os holofotes também se viraram para Meghan Markle, a duquesa que trocou a sisudez dos palácios britânicos pelo frenesi do mundo plebeu. Durante o Salute to Freedom Gala, no Intrepid Museum, em Nova York, em novembro, ela apareceu ao lado do marido, o príncipe Harry, ostentando um poderoso vestido vermelho da grife Carolina Herrera adornado com uma abertura do pés à coxa. É verdade que o casal se desligou da família real britânica, mas tudo o que Megan faz continua repercutindo em Buckingham, em Londres, sede da realeza. E o vestidão da atriz não pegou nem um pouco bem nos salões da rainha Elizabeth II. Foi mais ou menos o mesmo desconforto que sua ex-sogra, a princesa Diana (1961-1997), provocou quando surgiu com o vestido de paetês verde-água de Catherine Walker durante uma visita oficial à Áustria, em 1986. A fenda nem era tão profunda, mas até hoje os austeros guarda-roupas do palácio rangem de espanto associado a ódio com aquele momento histórico.
Não há, contudo, como segurar o andar da moda, a despeito do nariz torto da rainha. Na própria capital londrina, a maioria das fashionistas que passou pelo tapete vermelho do Royal Albert Hall, durante o Fashion Awards, desfilou modelos nos quais as fendas eram a joia da coroa. Outro destaque foi para Lady Gaga e seu modelo roxo da Gucci usado na première do filme House of Gucci. O vestido combinou com o estilo extravagante de Gaga. “As peças criam uma identidade original, diferente, com personalidade”, diz o estilista Lino Villaventura. É claro que ninguém precisa (ou pode) ser uma Lady Gaga, uma JLo ou uma Megan Markle para saborear o impacto de uma boa fenda. Mas, como já sublinhou o estilista italiano Roberto Cavalli, um vestido pode transformar uma vida. Se ele tiver fenda, então…
DAS MILONGAS A HOLLYWOOD
O surgimento das fendas aconteceu no século passado como forma de dar liberdade de movimentação às dançarinas de tango. Sem as aberturas, jamais seria possível a execução do lindo trançar de pernas que caracteriza o bailado argentino. De tão sexy que eram, acabaram migrando das milongas para os estúdios de Hollywood, onde foram incorporadas ao figurino de diversos filmes. Alguns vestidos entraram para a história. O modelo preto de Rita Hayworth na pele de Gilda (1946), o Versace de Angelina Jolie na premiação do Oscar em 2012 e até o vermelho de paetês de Jessica Rabbit, personagem animada do longa Uma Cilada para Roger Rabbit (1998), permanecem como referências de peças elegantes e sensuais.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769