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As alfinetadas de Aguinaldo Silva após 41 anos na TV Globo

O autor de novelas, que está lançando uma autobiografia, revela detalhes da saída da emissora, fala da convivência com atores e não foge de temas polêmicos

Por Sofia Cerqueira Atualizado em 15 jul 2024, 11h49 - Publicado em 4 jul 2024, 17h43

Conhecido por sua verve afiada, o autor de novelas Aguinaldo Silva, 81 anos, 41 deles na TV Globo, está no Brasil para o lançamento do livro Meu Passado Me Perdoa: Memórias de Uma Vida Novelesca (ed. Todavia). Radicado em Lisboa, o escritor e jornalista se dedicou a fazer uma autobiografia durante a pandemia, poucos meses após ser informado que  seu longevo contrato com a emissora carioca não seria renovado. Além de 18 livros, Aguinaldo traz no currículo dezesseis novelas do horário nobre, como Vale TudoTieta, Roque Santeiro e Fina Estampa.  Em entrevista a VEJA, Aguinaldo revela detalhes de sua saída da Globo; conta particularidades da sua trajetória; discorre sobre o gênero que o consagrou, e não se furta, com a ironia que lhe é peculiar, a falar sobre temas espinhosos, como a acusação de assédio contra José Mayer, a postura política de Regina Duarte e a sua própria fama – inverídica – de bolsonarista. Tudo com uma ou outra, claro, alfinetada.

Saída da Globo

Eles não tiveram a preocupação de fazer uma coisa mais cortês depois de 41 anos de casa, foi um comunicado objetivo. O meu último contrato era de seis anos, como fazia normalmente, e venceria no dia 29 de fevereiro de 2020. O que realmente me chateou e achei impróprio foi um rapaz da Globo me ligar no dia 1º de janeiro, em pleno feriado, às 8h da manhã, para me avisar que ele não seria renovado. Como está no meu livro, a pessoa dizia que a emissora não estava mais interessada no meu trabalho, ou seja, estava “me mandando à merda”. Não sei exatamente de quem partiu a decisão. Na época, o comando da dramaturgia era do Silvio de Abreu e a direção-geral do Schroder (Carlos Henrique), mas eles também não estão mais lá. Fui o primeiro de uma leva. Logo depois, atores, autores e diretores, cujos contratos iam terminando, foram sendo dispensados. Confesso que fiquei até aliviado quando sai da Globo. A perspectiva de escrever mais uma novela naquele sistema já não me agradava mais.

Horário nobre e pé de meia

Três meses depois do episódio do fim do meu contrato, em meio à pandemia, recebi a notícia de que Fina Estampa seria reprisada no horário das nove, algo inédito na TV. Como conto nas minhas memórias, “saí pelos corredores da minha casa a dançar mambo”. Fez muito bem para o ego depois da emissora não me querer mais. E ainda tinha um detalhe: havia uma cláusula no meu contrato anterior que, caso um trabalho meu fosse reprisado no horário nobre, algo até então impensável, eu receberia o equivalente ao meu último salário por cada mês no ar. Não tenho nenhuma razão para reclamar da Globo hoje, ela me permitiu ter uma vida tranquila. Se você me perguntar se sou rico, digo que não. Rico é o Elon Musk ou alguns magnatas brasileiros que é melhor a gente nem citar, mas tenho o suficiente para viver até o resto da vida. Só não dá para passar dos 120 anos (risos).

Queda na audiência das novelas

Muitos autores estão preocupados demais em renovar o gênero, mas ele não é renovável. Novela é um melodrama, é o drama exacerbado, a paixão desvairada. Não adianta: os temas centrais de toda novela são as disputas familiares pelo poder e um grande amor entre duas pessoas que sofrem durante 180 capítulos até tudo dar certo. Game of Thrones, aquela série fantástica, nada mais é do que um melodrama muito bem-feito. Quando vejo as tramas que estão no ar, com exceção de algumas do horário das seis, tenho um certo ranço, vejo que os autores estão querendo ser “modernos” e acabam perdendo a essência do gênero. Para mim, só três pessoas fazem novelas mesmo hoje. São Glória Perez, João Emanuel Carneiro e Valcyr Carrasco.

Defesa de José Mayer

Trabalhei durante décadas com o Zé (Mayer), conheço o seu caráter e sempre acreditei piamente na versão dele sobre a acusação de assédio sexual. As pessoas que trabalhavam com os dois sabiam que a história contada pela moça, uma figurinista, não era a verdadeira. Eles realmente tiveram um caso, algo consentido. A história é essa. E houve um momento em que, por alguma razão que não sei, aconteceu um rompimento e surgiu aquela atitude de vingança. Qual é o caminho natural num caso desses? Ir à polícia e dar queixa. Ela sempre se recusou a fazer isso. As pessoas foram muito cruéis com ele, e isso custou muito alto ao Zé. Foi destruído profissionalmente.

Patrulha do politicamente correto

Olhando para trás, tem cenas que escrevi que fico envergonhado quando vejo hoje. Lembro de uma da Nazaré Tedesco (Senhora do Destino) que passa uma mulher com sobrepeso e ela diz insultos por causa disso. Penso, ai, meu Deus, eu realmente escrevi isso? Lembro também que a Odete Roitman (Vale Tudo) falava coisas preconceituosas sobre o Brasil. Ela vivia chamando o povo de “gentinha”, mas condizia com o poder maléfico do personagem. Também era algo que a gente sabia que as pessoas falavam na vida real. Sei que sou de outra época e tenho consciência que é preciso ter mais cuidado porque o mundo mudou. Dá para ser criativo sem ser ofensivo. Só não concordo com certos exageros, como a corrente que defende que para fazer uma novela no papel de um transexual é preciso ser trans. Acho um absurdo. O ator é um fingidor, sua marca é a capacidade de fazer qualquer personagem. Se for assim, um personagem de psicopata tem que ser feito por alguém com esse transtorno.

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Regina Duarte e seus “erros”

Adoro a Regina (Duarte) e devo muito a ela nas minhas novelas, não só pela viúva Porcina (Roque Santeiro), mas também pela Raquel Acioly (Vale Tudo), personagem de um folhetim que também escrevi. Vejo que essa polarização toda que o país vive acabou piorando a situação, mas não podemos perder uma artista com a Regina porque ela deu opiniões que talvez não sejam agradáveis de ouvir. Como qualquer ser humano, ela também é dada a falhas, erros, enganos. Mas é uma grande pena que, de repente, todo o trabalho daquela pessoa passe a ser desvalorizado por uma posição política.

Sem papas na língua nas redes sociais

Comparado com o que leio na internet, acho que sou até muito comportado nas redes sociais (risos). Mas, agora, para não me expressar mal e não surgirem dúvidas de interpretação nas minhas postagens, sobretudo no antigo Twitter, não posto mais nada no calor da emoção. Faço o texto, espero uns vinte minutos para reler e, só assim, solto. Recentemente, furioso com dois “bolos” em shows da Madonna, disparei contra ela na internet. Primeiro, a cantora tinha cancelado uma apresentação mais intimista que faria em Lisboa, que tinha comprado ingresso, e depois atrasou mais de três horas para um show num estádio, no qual tinha reservado um lugar na primeira fila. Me irritei por esperar tanto, fui embora e soltei a fúria nas redes sociais. Escrevi: “Madonna que vá à luta (o original era à merda). Nem Jesus me deixaria esperando uma hora”. Veio uma enxurrada de críticas. O que queria dizer é que nem Jesus faria as pessoas esperarem tanto.

Irritação com a fama de bolsonarista

As redes sociais têm o poder de tornar uma mentira numa espécie de verdade absoluta, difícil de desmentir. Ainda no período em que Jair Bolsonaro era deputado federal, fiz uma postagem me posicionando contra o jornalista Glenn Greenwald, que havia tido um bate-boca pesado com ele (Aguinaldo postou: “Queima rosca ou cretino fascista? Minha conclusão: em matéria de insultos, Bolsonaro é muito mais sutil e sofisticado que Glenn Greenwaldo”). Fui tachado de um notório bolsonarista, algo que nunca fui. Jamais votei nele também.

Encontro com Anitta

No começo da carreira da Anitta, a entrevistei para um programa que eu tinha no YouTube. Como muitos artistas que começam a fazer muito sucesso logo compram um avião, perguntei se ela não teria um. Quando me respondeu, determinada, que “preferia investir em seus clipes”, já deu para ver que iria longe. Eu gostava das músicas dela daquela época. Hoje em dia é impossível gostar de qualquer música. Não se faz mais nada que você ouça e não se esqueça três dias depois. Não tem um Tom Jobim, né? Naquele período, cheguei a pensar em chamá-la para fazer uma música para uma das minhas novelas, mas não formalizei o convite. Em seguida, ela já estourou e entrou na fase mais aguda da carreira. Não nos encontramos mais.

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Um ator vetado e o outro fofoqueiro

Tinha um certo incômodo com o jeito de articular as falas do Murilo Benício, tanto que ele não fazia minhas novelas. Nesse aspecto, tinha algo que lembrava o James Dean (1931-1955), que resmungava as palavras meio entre os dentes. Mas não tenho nenhum problema pessoal com o Murilo, tanto que se me perguntarem se trabalharia hoje com ele, digo que sim. Agora, o único profissional que tirei de fato de uma novela minha, depois da trama no ar, foi o José Lewgoy (1920-2003), que era um ótimo ator, mas deu muito problema numa novela por causa das fofocas. Descobri que ele fazia comentários maldosos nos bastidores, inclusive do autor, o que acabava prejudicando o clima da novela. Optei por matar o seu personagem.

Censura por cenas “excessivamente” sensuais

Quando eu estava com a novela Duas Caras no ar, fomos surpreendidos com várias reclamações sobre o excesso de sensualidade nas cenas do núcleo de pole dance. Naquela época (era 2007, segundo mandato de Lula), um órgão do Ministério da Justiça, que ainda existe e estipula a classificação etária da programação, deu um ultimato, sem alternativa de recurso. Ou a emissora modificava aquelas cenas ou a novela, que era das nove, iria para o horário das 23h. Foi muito tenso, havia o risco de prejudicar o andamento de toda a novela. Acabei optando por criar uma explosão do cabaré onde havia a tal pole dance. Se me perguntarem hoje se eu acho que foi censura, eu não estaria sendo sincero se usasse outro termo.

Novela arquivada e a possibilidade de volta à Globo, mas com condições

Essa história de que a Globo tinha uma novela minha já escrita no seu acervo e optou, no fim do ano passado, por arquivá-la, não é verdade. O que aconteceu é que, por intermédio de um agente, a sinopse de uma nova trama chegou à direção da Globo. Essa questão ainda está no ar, nada foi decidido e nem me comunicado. Depois de tudo que aconteceu, eu voltaria a trabalhar na emissora, sou um profissional. Mas, claro, teria que avaliar as condições. Na minha biografia, sou um autor que só escreveu novelas para o horário nobre. Ao todo, são 16. Não quebraria essa regra. Agora, além dessa novela, tenho mais três com as sinopses prontas. Uma delas, inclusive, em negociação com uma TV de Portugal. Enquanto tiver vontade e resistência vou continuar fazendo novela.

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