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Aos 79, Bob Dylan fala da morte e mantém aura enigmática em novo disco

'Rough and Rowdy Ways' é o primeiro disco de estúdio em oito anos do cantor

Por Arthur Dapieve
Atualizado em 4 jun 2024, 14h12 - Publicado em 19 jun 2020, 06h00

Dezenas de milhares de fãs, críticos musicais e acadêmicos, autonomeados “dylanistas”, estarão em campo a partir desta sexta-feira, 19, munidos de pás e picaretas metafóricas em busca das pepitas de significado sob as camadas de citações, alusões e trocadilhos de Rough and Rowdy Ways. Vem acontecendo assim há quase sessenta anos. Cada novo álbum de Bob Dylan renova essa corrida ao ouro. O próprio Dylan estimula a obsessão, não só graças a sua poesia, densa e culta, mas porque jamais congela qualquer explicação única sobre uma canção. Todd Haynes não dirigiu à toa um filme chamado Não Estou Lá (2007), estrelado por vários Dylans possíveis.

“Três milhas ao norte do Purgatório
A um passo do Grande Além
Eu rezei para a cruz
Eu beijei as garotas
E eu cruzei o Rubicão”

(Crossing the Rubicon)

Os versos “Hoje, amanhã e ontem também / As flores estão morrendo, como todas as coisas” abrem esse 39º álbum de estúdio de Dylan. É o primeiro de músicas inéditas desde Tempest, de 2012, e, logo, tem a responsabilidade de ser o primeiro lote de poemas desde o Nobel de Literatura, em 2016. O ouvinte da faixa de abertura, I Contain Multitudes, é de cara arrastado para a realidade da finitude. Aos 79 anos, Dylan também não está ficando mais distante da morte física. Porém, ao jornal The New York Times, em recente e rara entrevista, ele se esquivou, como sempre, e disse não ligar para o fim em termos pessoais: “Penso é na morte da raça humana”. A sua imortalidade artística já estava assegurada muito antes de ser ouvido recitando “eu contenho multidões” em uma canção que cita do pop Indiana Jones ao culto William Blake.

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Rough and Rowdy Ways é uma serena reflexão sobre a morte, um balanço autobiográfico, e ainda um panorama da história americana desde os anos 60 (confira versos ao longo da reportagem). Primeira música a aparecer, em março, Murder Most Foul narrava o assassinato de John F. Kennedy, em 1963, com versos mais diretos que o “dylanês” da maturidade. Então se tornava, no meio da própria canção, uma lista de pedidos ao DJ Wolfman Jack, um personagem real. Dylan se referia a músicas e a intérpretes de sua preferência. Choviam nomes: Etta James, John Lee Hooker, Eagles, Warren Zevon, Stan Getz, Thelonious Monk… Tanta gente que a duração ia a dezesseis minutos e 54 segundos (a canção está sozinha no segundo CD da versão física do álbum). Mesmo assim, chegou ao topo da revista Billboard, categoria vendas digitais, o surpreendente primeiro nº 1 da carreira de Dylan. Só espantou-se com sua duração quem esquecera que Highlands cravava dezesseis minutos e 31 segundos em Time out of Mind, de 1997, ou que a faixa-­título de Tempest levava treze minutos e 54 segundos para contar a história de Titanic, o filme.

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Aquele álbum de 2012 era vigoroso, mais pesado e rascante, inclusive no vocal, enquanto Rough and Rowdy Ways é reflexivo, mais leve e delicado, nas letras e nas músicas. Seis das suas dez faixas são baladas variadas, duas são rocks (sendo agitada só Goodbye Jimmy Reed, outra referência musical) e duas são blues. Dylan está mais próximo que nunca de outro poeta-cantor, seu amigo canadense Leonard Cohen, morto em 2016, aos 82 anos. O discreto acompanhamento comandado pelo guitarrista Charlie Sexton fornece o divã em que Dylan se recosta para recitar, mais que cantar, longos poemas nos quais a palavra “eu” aparece com uma frequência intrigante.

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Não importa qual Dylan canta “Eu vivi além demais da minha vida”, no hino Mother of Muses. Nem qual repete “Eu cruzei o Rubicão…”, no blues elétrico Crossing the Rubicon. Nem qual diz “Espero que os deuses peguem leve comigo”, na enamorada I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You. Nem, muito menos, qual das suas personas recita “Key West é o lugar aonde ir / Se você está procurando imortalidade”, na utópica Key West (Philosopher Pirate). Não se deixem enganar. Dylan está passando o período da pandemia em Malibu, na Califórnia, na outra costa dos EUA, não em Key West, na Flórida. Típico Dylan. Não estou lá, lembrem-se, “eu contenho multidões”.

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CONTRA O ÓDIO - O dia do assassinato de Kennedy, em 1963: letras sobre a história americana (Bettmann/Getty Images)

Dylan é um encontro de oceanos. Um professor de literatura greco-romana na Harvard, Richard F. Thomas, filiou o bardo de Duluth, Minnesota, a Homero e a Ovídio no livro Why Bob Dylan Matters, publicado em 2017. Certo, Dylan fez parte do “clube do latim” no ensino médio, em Hibbing. Daí, por exemplo, a menção a deuses, no plural, ou ao Rubicão, rio que Júlio César cruzou para se tornar o ditador de Roma. No entanto, Dylan também dialoga com a poesia das ilhas britânicas, de Dylan Thomas, Blake e Shakespeare, a quem sutilmente se comparou no discurso de aceitação do Nobel. Ou com a poesia francesa, de Verlaine e Rimbaud. Ou, claro, com a dos compatriotas beats: Ginsberg e Corso (além do prosador Jack Kerouac) aparecem em Key West.

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Mother of Muses é onde Dylan chega mais próximo da política. Enaltece quem “luta contra o ódio / para que o mundo possa ser livre” e cita os generais William T. Sherman, que combateu os confederados, e George S. Patton, que enfrentou os nazistas, ambos “limpando o caminho” para Elvis Presley e Martin Luther King. Em Dylan, essa atualíssima história dos EUA faz sentido. Ele, sim, pode cantar, em False Prophet, rock esparso no qual, aliás, diz exatamente que não é um falso profeta: “Sou o primeiro entre iguais / Atrás de ninguém / O melhor dos últimos / Pode enterrar o resto”. Se o universo expandido do rock tivesse gerado um único gênio, este seria Bob Dylan.

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Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692

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