Andrea Bocelli: “O mundo nos deu um aviso”
O tenor italiano relembra a histórica apresentação na catedral de Milão durante a pandemia e diz não ter medo da morte nem das doenças
Sua apresentação na catedral de Milão vazia, por causa do lockdown na Itália, se tornou uma das imagens mais marcantes de 2020. Como foi essa experiência? Esse dia está guardado entre as minhas memórias mais caras. Fiz bem pouco, era meu dever como cristão rezar no dia da Santa Páscoa. Graças à internet, muitas pessoas responderam com entusiasmo, superando qualquer expectativa, confirmando a sede de espiritualidade e a necessidade de recomeçar com valores mais elevados.
Seu novo álbum, Believe, é pautado na fé cristã. Como a religião se manifesta em sua vida? Sem a fé, a vida é uma tragédia anunciada. Depois de tantos álbuns em que a dimensão física era preponderante, quis fazer um disco que falasse ao espírito. Quando adolescente, eu me dizia agnóstico. Hoje, a fé é um elemento básico na minha vida. O disco reuniu peças clássicas de compositores como Mozart, Fauré, Bizet, mas também inéditas de Giacomo Puccini e Ennio Morricone — talvez a última composição que ele assinou antes de morrer — e canções não religiosas, mas espirituais, como Hallelujah de Leonard Cohen e You’ll Never Walk Alone.
Em um ano tão difícil, como mantém a esperança e a sanidade? O otimismo é um comportamento vencedor. A esperança, neste momento histórico, ganhou peso na balança existencial. O desafio é não perder a tranquilidade, evitando a dissipação inútil de energia e de defesas imunológicas que resultam do pânico e do stress. O mundo nos deu um aviso. Espero que saibamos aprender a lição, aproveitando este recomeço para mudar nosso comportamento em relação à vida, adotando uma nova hierarquia de valores.
O senhor sofre de um grave glaucoma desde a infância. Como foi superar uma dificuldade física como a cegueira e se tornar um cantor de sucesso? Não acredito que o fato de ser deficiente visual tenha influído na minha atividade musical. O corpo humano é um prodígio sem igual e os canais de comunicação com o mundo são numerosos e articulados. Ninguém fica ressentido de não ter asas para voar ou brânquias para respirar embaixo d’água. Acho que é justo que cada ser vivo, inclusive os humanos, se aproxime com gratidão dos instrumentos que Deus lhe deu.
Alcançar a maturidade tem sido um desafio? Envelhecer é uma descoberta contínua na qual, porém, as surpresas positivas são um pouco menos numerosas do que as negativas. Não tenho medo da morte nem das doenças. Espero prosseguir nesta aventura de envelhecer com a minha mulher, tendo a alegria, um dia, de poder segurar em meus braços os filhos dos meus filhos. Também creio que ainda vou abraçar as pessoas queridas que se afastaram da terra antes de mim.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715