Adotado por uma nova geração, o feminismo ressurge com vigor renovado
O movimento passa a ser assumido sem meias-palavras por mulheres que fazem do seu estilo de vida a conquista por espaço. Até a Barbie aderiu à causa
Um furacão cor-de-rosa está varrendo o planeta, insuflado pela mais improvável das personagens: a boneca Barbie, tema de um filme que vira de cabeça para baixo a imagem que ela carrega — desancada por toda mulher moderna — de uma carinha bonita, meio ingênua, que só quer saber de se exibir e consumir. Situado em um universo mágico, daqueles que apenas Hollywood sabe criar, e seguindo um roteiro bem-humorado e surpreendente, Barbie, o filme, põe a loirinha perfeita, junto com o mais ou menos namorado Ken, em contato com o mundo real, onde os homens ditam as regras, mandam e desmandam. Quando Ken transplanta a dominação machista para a Barbielândia, um lugar em que jamais foi protagonista, a boneca se coloca à frente de uma revolta feminista para ninguém botar defeito. “Abaixo o patriarcado”, decreta a neoativista, interpretada pela estonteante atriz Margot Robbie, sobre saltos poderosamente altos — bem diferente da versão jeans-camiseta-tênis da manifestante padrão. Pois é, a que ponto chegamos: Barbie, símbolo da patricinha sem noção, virou mulher liberada.
Uma história como essa, repleta de piadas autodepreciativas e tiradas sarcásticas, já arrecadou mais de 1 bilhão de dólares em bilheteria porque, além de bem filmada, bem interpretada e bem contada, reflete o momento em que as mulheres se encontram na luta de séculos para firmar seu papel na sociedade: aquele em que se sentem poderosas e capazes de tudo, inclusive de abraçar o feminismo usando minissaia e salto agulha. “O filme oferece a possibilidade de a mulher repensar sua condição e é exatamente disso que trata o projeto feminista”, diz Claudia Mitchell, autora de diversos estudos sobre a boneca e professora da James McGill, a mais prestigiada universidade do Canadá.
No ângulo dos negócios, Barbie é a coroação de uma operação bem-sucedida de reposicionamento da marca da fabricante Mattel (também alvo de ironias no filme). O objetivo é reforçar a mensagem de que a boneca, nas várias versões de profissões, tons de pele, peso, altura e cor de cabelo lançadas nas últimas décadas, na verdade vem contribuindo para a causa feminina, ao contrário do que dizem as más línguas. Ainda que a manobra tenha lá um certo tom de apropriação de bandeira pela indústria cultural, no plano sociológico a boneca do filme expressa uma realidade muito atual, na qual feminismo deixou de ser uma palavra feia, rejeitada pela maioria das mulheres por estar associada a atitudes radicais de ativistas raivosas.
A mais abrangente pesquisa sobre o tema, realizada pela Genial/Quaest com mulheres de todas as regiões, estratos sociais, faixas etárias, religiões e escolaridades, obtida com exclusividade por VEJA, mostra que uma de cada três brasileiras se declara feminista, um aumento de 47% sobre a cifra registrada em 2000. Quando perguntadas se conhecem alguém que se classifica de tal forma, o número estica para quase a metade — um claro sinal de que o assunto está vindo à luz como nunca antes. Nos Estados Unidos, a mudança é ainda mais acentuada: dois terços se proclamam assim, sem papas na língua. “No debate político de hoje, a pauta dos costumes e valores ganhou uma relevância jamais observada. Esse ativismo passou a ditar o comportamento e o consumo das pessoas. O feminismo saiu do armário”, resume Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest.
Bandeira agitada na metade do século passado, misturada à do pacifismo e às da luta pelos direitos civis, o feminismo abrangente, voltado para a liberação da mulher em casa, no trabalho e na sociedade, ganhou uma conotação negativa — para os tolos machistas, era coisa de “mulher mal amada”. Durante muito tempo, mesmo as mais liberadas rejeitaram o termo, distanciando sua atitude das marchas e das invectivas contra o gênero masculino em geral. Agora, enfim, assiste-se a uma reabilitação. “Passei a guiar minha vida pelo feminismo”, diz a estudante de direito Maria Eduarda Prado, 23 anos. Criada em uma família evangélica e conservadora, ela sempre ouviu que o objetivo da mulher deveria ser conquistar um marido e ter filhos. Ao entrar na faculdade e conviver com amigas que pensavam diferente, mudou de postura. “Por que só eu tinha tarefas domésticas em casa e por que só seria aceita se adotasse uma postura submissa? Quando você reflete sobre essas coisas, percebe que a orientação que sempre tive não se sustenta”, completa ela, hoje líder de um coletivo feminista, apesar de a escolha a colocar em rota de colisão com os pais.
A persistência das desigualdades em pleno século XXI é uma das molas que impulsionam a atual geração a abraçar o feminismo. Apesar de inegáveis avanços, as mulheres brasileiras ainda ganham, em média, 20% menos do que seus colegas do sexo masculino, ocupam apenas 38% dos cargos de chefia e seguem vítimas de violência doméstica e constante abuso sexual — um a cada dez minutos. A resiliência do patriarcado fica explícita na mesma pesquisa da Genial/Quaest, na qual, perguntados se eram machistas, apenas 7% dos homens responderam positivamente, mas questionados se conheciam alguém que fosse, 41% disseram que sim, uma discrepância que revela quanto a questão ainda reside no rol dos tabus. “O avanço das mulheres deixa a ala masculina confusa em relação ao seu lugar no mundo, uma vez que subtrai seus privilégios”, observa a historiadora Gabriela Trevisan, da Unicamp.
O engajamento atual, explicam os especialistas, é uma reação a um certo arrefecimento da causa na virada do século, quando a morte do feminismo chegou a ser decretada. Os ânimos femininos se acirraram novamente também com a ascensão de conservadores empenhados em apagar conquistas como o direito ao aborto. “A volta da direita ao poder em diversos países tem levado a um retrocesso das relações de gênero, inclusive no Brasil”, constata a socióloga Marlise Matos, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG, ressaltando que é em águas revoltas que o barco do feminismo historicamente tem navegado.
Considera-se a atitude clara, sem meias-palavras, de agora a quarta onda do feminismo mundial (veja o quadro). A primeira ocorreu na virada do século XIX para o XX, com a mobilização feminina em torno do direito ao voto, na Inglaterra, que logo se espalhou para outros países. De lá para cá, as batalhas por mais igualdade foram se multiplicando e ampliando bandeiras. Ao fim da guerra, em meados dos anos 1940 — eis a segunda lufada —, o foco era a permanência da mulher no mercado de trabalho, onde havia entrado para substituir os homens que foram para o front e de onde estava sendo afastada pelo retorno dos combatentes. Por fim, como terceiro movimento, as questões relacionadas aos costumes entraram na agenda nos anos 1960 e 1970, na esteira da pílula anticoncepcional. No Brasil, a ditadura militar e a luta pela redemocratização acabaram atrasando as discussões de gênero em mais de uma década. “Sofríamos uma série de preconceitos. Nossas demandas sempre ficavam em terceiro, quarto plano”, recorda a professora Maria Lúcia Silveira, 67 anos, que lutou por políticas públicas em prol das mulheres.
Esta quarta onda ganhou a intensidade de um tsunami pelo eco de dois tambores: as redes sociais e as celebridades engajadas. A todo momento, influenciadoras espalham conceitos e pensamentos de lideranças feministas históricas, em mensagens curtas, afeitas à superficialidade da internet. “As diversas formas de feminismo hoje são vistas como um estilo de vida e estão focadas em desmantelar barreiras por meio da transformação do dia a dia”, diz Cristina Scheibe Wolff, professora de teoria de gênero da UFSC. Sempre por força da ressonância ampliada à máxima potência, o movimento, historicamente identificado com mulheres brancas, foi chacoalhado com questionamentos de outras minorias. Em busca da diversidade, abriu-se interlocução com lideranças negras e da comunidade LGBTQIA+, fazendo do feminismo de agora um conceito mais vasto. “Para combater as diferenças de gênero é necessário olhar para as desigualdades em geral, de modo a não deixar ninguém de fora da briga por espaço”, diz Juliana Gonçalves, organizadora da Marcha das Mulheres Negras, de São Paulo.
Imersas na nova realidade, as divas do mundo pop (leia na pág. 78) assumiram o feminismo sem medo de ser feliz, escancarando temas tabus. Madonna, a pioneira, estourou fazendo apologia ao sexo antes do casamento em Like a Virgin, nos anos 1980. Rihanna, vítima de abjeta violência por parte do também cantor Chris Brown, estremeceu estruturas ao recusar o papel de vítima. Beyoncé, a rainha, convoca mulheres a se engajar em movimentos feministas nos shows e gravou uma canção com a participação de Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana apontada como uma das novas vozes do tema. Taylor Swift, uma das maiores formadoras de opinião da atualidade com sua figura que lembra Barbie, criticou diretamente o patriarcado na letra da canção The Man, em que afirma que tudo seria mais fácil se ela fosse homem. No Brasil, Anitta desbravou o mundo funk, predominantemente masculino, mostrando celulites sem retoques no clipe Vai Malandra e exibindo o corpo e o rebolado do jeito que bem entende.
A relação da atual geração com o próprio corpo, aliás, é exemplar dos novos tempos: sai a objetificação, entram o protesto e a reafirmação na forma de mamilos, pelos e cicatrizes de cesárea. Expor a nudez é totalmente aceitável, desde que a iniciativa parta da dona dela. “É como se a mulher afirmasse: ‘Faço o que quiser com meu corpo’. Parece um detalhe, mas muda tudo. Ela passa a ter o controle do seu dinheiro, da sua vontade e, sobretudo, de si própria”, diz Carla Rodrigues, professora de filosofia da UFRJ. A luta das feministas não está ganha — é preciso angariar ainda mais apoio entre seus pares e seguir firmes na trilha para um mundo em que homens e mulheres tenham suas diferenças sem ser desiguais. Mãe de todas as feministas, Simone de Beauvoir escreveu em O Segundo Sexo (aqui, livre de qualquer machismo): “Não se nasce mulher, torna-se”. Um século depois, as novas gerações completam a sentença: “A mulher que ela bem quiser”.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854