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A trajetória de Stan Lee, de office boy a criador de heróis

Pai de personagens como Hulk, Homem-Aranha e Thor, o roteirista ajudou a estabelecer o nome da Marvel como uma das mais importantes do mercado

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 11 ago 2020, 17h07 - Publicado em 12 nov 2018, 17h31

Antes de ser Stan Lee e ganhar o apelido de “The Man” (O Cara, em tradução livre), o principal roteirista de quadrinhos da Marvel, que morreu nesta segunda-feira, aos 95 anos, viveu uma história digna de cinema. De office boy a soldado, antes de virar o cabeça da editora de HQ, e com direito a uma bela história de amor, Stan Lee, ou Stanley Martin Lieber, nasceu em uma família humilde, em Nova York, no dia 28 de dezembro de 1922.

Filho de judeus imigrantes da Romênia, ele dividia um pequeno apartamento com a família e precisou começar a trabalhar cedo. Durante a adolescência, teve diversos empregos, entre eles foi entregador de lanchonete, lanterninha e office boy. Seu sonho sempre foi ser escritor — ou ator —, planejava lançar romances, poesias ou até trabalhar com roteiros de cinema.

A chance de escrever surgiu por um contato entre familiares. Stanley era primo de Jean Goodman, esposa de Martin Goodman, dono da editora Timely Comics – que mais tarde se tornaria a Marvel Comics. O futuro gênio dos quadrinhos foi contratado aos 16 anos como assistente. Suas primeiras tarefas, contudo, passavam longe da escrita. Ele era encarregado de varrer o chão, esvaziar cinzeiros e buscar o café dos desenhistas, entre eles nomes que mais tarde também se tornariam lendas, como Syd Shores, Joe Simon e Jack Kirby — trio envolvido na criação e no desenvolvimento do Capitão América.

Foi com o Capitão América que o adolescente Stanley teve sua primeira chance de escrever uma história. O herói patriota vivia um bom momento na década de 40, quando era símbolo da luta contra os nazistas na II Guerra Mundial. Stanley assinou o conto Capitão América Desbarata a Vingança do Traidor e, para não manchar sua futura carreira como escritor sério, ele optou pelo nome Stan Lee. O pseudônimo duraria para sempre.

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O rapaz continuou a criar histórias em quadrinhos e ganhou ainda mais espaço quando Simon e Kirby deixaram a empresa por um período. Lee então, aos 18 anos, se tornou, quase sem querer, editor de uma relevante editora de HQs. Jovial, brincalhão e comunicativo, o nova-iorquino dominou o ambiente de trabalho e assinou cerca de três histórias por semana.

O ritmo de trabalho mudou em 1942, quando Lee se alistou no Exército americano — em consequência ao ataque japonês à base de Pearl Harbor, um ano antes. Em campo, sua aptidão para a escrita foi descoberta e utilizada pelos militares. Ele se tornou responsável por criar cartazes sobre prevenção de doenças para os soldados, além de manuais em forma de quadrinhos para operação de armamento e para o setor administrativo. Na época, assinando como soldado Stan Lee, continuou a escrever os roteiros de Capitão América. As vendas do herói explodiram com o desenrolar do conflito mundial. Em 1943, cerca de 25 milhões de exemplares do personagem eram vendidos por mês.

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Capa de HQ de 1941 do Capitão América (//Reprodução)

A guerra ajudou a empresa a crescer e, com o dinheiro, o roteirista se tornou um solteirão cobiçado. A vida de garanhão chegou ao fim em 1947, quando Lee conheceu a modelo britânica Joan Boocock, que era casada. Ele a convenceu a pedir o divórcio. Eles se casaram em seguida e assim permaneceram por 69 anos — ela morreu em julho de 2017. Joan, aliás, seria a inspiração para muitas musas da Marvel, como Sue Storm (do Quarteto Fantástico), Gwen Stacy e Mary Jane, ambas namoradas de Peter Parker, o Homem-Aranha. Também teria sido Joan quem deu um precioso conselho a Lee: que tal humanizar um pouco os super-heróis?

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Stan Lee e sua esposa Joan
Stan Lee e sua esposa Joan (Mark Mainz/Getty Images)

Antes de pôr esse conselho em prática, Lee viveu tempos difíceis nos anos 1950. Os Estados Unidos pós-guerra ficaram obcecados pela violência e delinquência juvenil. Os quadrinhos perderam a popularidade. Editoras faliram. Lee, então, planejou mudar de profissão e pedir demissão.

Raio humanizador

Cena do filme 'O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro'
Cena do filme ‘O Espetacular Homem-Aranha 2: a Ameaça de Electro’ (Divulgação/VEJA)

Aos 38 anos, em 1961, Stan Lee recebeu uma encomenda do dono da Marvel, que pedia por uma história com uma trupe de heróis, inspiração que teria vindo da recém-criada Liga da Justiça, da concorrente DC Comics. O caminho mais fácil seria unir os heróis já existentes na casa. Porém, Lee começou o processo de humanização dos seres superpoderosos, qualidade que se tornou a marca da Marvel no futuro. Lee criou, com a ajuda de Jack Kirby, o Quarteto Fantástico.

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Seu “raio humanizador” em parceria com a Guerra Fria serviram como base para a criação de diversos personagens imperfeitos e moralmente ambíguos, que se tornaram heróis ou anti-heróis após algum acidente envolvendo radiação, a grande ameaça da época. Nos anos 1960, Lee e Kirby adicionariam aos seus currículos criações de peso, como o playboy Homem de Ferro, o deus nórdico Thor, o Incrível Hulk, o grupo Vingadores (com Capitão América ressuscitado) e o supertime de mutantes X-Men.

A editora Marvel renasceu das cinzas de vez quando Lee e o taciturno desenhista Steve Ditko desenvolveram a trama de um adolescente desajustado, mordido por uma aranha radioativa que lhe concede poderes – o Homem-Aranha. Os heróis musculosos e corpulentos agora tinham um concorrente franzino, nerd, de cabelo bem penteado e óculos. O tipo fracote que sofre bullying na escola. Era também tagarela e se apoiava no humor para sobreviver. Quem nunca?

Foi nessa época que Lee teve outra ideia aparentemente tola, mas importante para a história da empresa. Ele passou a focar grupos de estudantes universitários, criou um fã-clube da Marvel e fez palestras em colégios e universidades como Princeton, Oxford e Cambridge. Começou então a mudança de leitores de gibis do público infantil para o adolescente e adulto.

TV e cinema

Vingadores: Era de Ultron
Vingadores: Era de Ultron (Divulgação/VEJA)

Na década de 70, Lee se afastou da produção de quadrinhos e assumiu posições mais administrativas dentro da Marvel. Chegou a ser o presidente da editora por um período, antes de voltar ao cargo de publisher. Em 1980, tornou-se diretor da nova empresa, a Marvel Productions, voltada para produções de televisão e cinema com os personagens da casa.

Lee trocou Nova York por Los Angeles, onde ficou incumbido da missão de negociar contratos com produtoras. Em paralelo, chegou a escrever dois roteiros de ficção cientifica com o diretor francês Alain Resnais, projetos que nunca saíram do papel.

A frustração de planejar filmes e não vê-los concretizados se tornou uma sensação bem conhecida de Stan Lee, que por anos enfrentou dificuldades em emplacar os heróis da Marvel em Hollywood. Os direitos para a produção de filmes em live-action dos personagens Homem-Aranha e Hulk, por exemplo, foram vendidos em 1976, mas ambos só veriam a luz do dia no cinema entre os anos 1990 e 2000.

Persistente, Lee aguentou os anos de projetos engavetados para presenciar a época das vacas gordas. Viu a mesa virar em 1998, com o sucesso de Blade, o Caçador de Vampiros. Logo depois, a Fox adquiriu os direitos de X-Men e a Sony pagou (hoje míseros) 10 milhões de dólares por Homem-Aranha.

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Controvérsias

Apesar da boa fama entre os fãs de quadrinhos, Stan Lee também somou diversos desafetos na indústria. Na Marvel, os roteiristas assinavam um contrato em que garantiam à editora o direito sobre os personagens ali criados. Lee nunca se posicionou a favor dos ilustradores e roteiristas que, fora da editora, pediam por direito aos royalties de suas criações. “Criei um bom número de personagens de sucesso para a Marvel, mas quando os criei sabia que seriam propriedade da empresa”, dizia.

O caso mais controverso foi a disputa com Jack Kirby. O desenhista deu diversas entrevistas garantindo que o colega tomava os créditos para si, mas, na verdade, quem criou sozinho boa parte dos personagens foi ele — Lee só colocava as falas nos quadrinhos já prontos, desenhados e com a trama desenrolada. O roteirista nunca deu o braço a torcer e não apoiou os processos movidos pelo amigo. A disputa legal acabou apenas em 2014, nas mãos dos herdeiros de Kirby, que morreu em 1994.

Stan Lee também chegou a processar a Marvel após o sucesso do primeiro filme do Homem-Aranha, em 2002. Segundo um antigo contrato com a empresa, o roteirista teria 10% de direito sobre os lucros de todos os seus personagens. Em um acordo extrajudicial, a Marvel pagou 10 milhões de dólares a Lee, que, a partir de então, encerrou seus direitos sobre os lucros futuros dos demais filmes.

Apesar de não ter se realizado como um escritor de romances ou roteiros, Stan Lee se tornou um dos produtores de cinema mais bem-sucedidos da história. No total, seus filmes já somam mais de 16 bilhões de dólares em bilheteria. Em 2011, aos 88 anos, ele recebeu uma estrela na calçada da fama de Hollywood.

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