A silhueta na berlinda: espartilho volta à moda e provoca polêmica
A redescoberta nas redes sociais da peça criada no Renascimento levou a uma questão para além do tapete vermelho: as mulheres devem seguir usando?
Nas cenas iniciais de Bridgerton, o onipresente seriado da Netflix passado na primeira década do século XIX, na antessala da era vitoriana, uma dama de companhia aperta até não mais poder o espartilho da jovem Prudence Featherington. “Ela não vai respirar, mãe?”, pergunta a irmã. “Na idade dela eu apertava a cintura até o tamanho de uma laranja e meia”, responde a matriarca. No TikTok, ali onde vicejam todas as ondas do mundo, inclusive as grandes bobagens, há um torneio, o corset challenge, cujo ridículo desafio é dar um apertão no acessório até que a silhueta fique finíssima, ao som de uma canção que diz o seguinte: “Você traz os corsets, nós fazemos os apertos; ninguém quer uma cintura com mais de 23 centímetros”.
Já não há, portanto, dúvida: ao passear vivamente pelo streaming e pelas redes sociais, o estilo anda nos corações e mentes. Beyoncé apareceu com uma cinta metálica da Burberry na festa depois da cerimônia do Grammy. A cantora Dua Lipa também surgiu espremida. A empresária-pop Kylie Jenner idem. E brotou, espetacularmente, uma pergunta: as mulheres devem usar espartilho, em plena era de briga intensa contra os estereótipos? Como moda é história, sempre que se tentou mexer na silhueta feminina houve ruído. Logo depois da II Guerra Mundial, como resposta aos anos de restrições, de falta de pano e de postura compulsoriamente discreta, o estilista francês Christian Dior (1905-1957) lançou um movimento, em 1947, que seria chamado de New Look — embora ele mesmo nunca tenha usado a expressão. Era um aceno ao passado, explorando os perfis das mulheres, tornando-as mais sensuais. As saias tinham de ser amplas e rodadas, com comprimento invariavelmente de 40 escassos centímetros acima do chão. A cintura, sempre marcada, exageradamente afinada por cintas e espartilhos. Fez sucesso, entrou na moda, rodou o mundo, mas alimentou protestos. A crítica: podia ser bonito (e era), podia ser sexy (e era), mas talvez representasse um retrocesso comportamental, no avesso do vestuário prático, afeito ao trabalho e não à beleza.
Nos Estados Unidos, como resposta, despontou um pequeno mas ruidoso movimento contrarrevolucionário, digamos, o The Little Below the Knee Club (O Clube um Pouco Abaixo do Joelho), que defendia a retomada do estilo mais pé no chão, menos espalhafatoso, como imaginado por Coco Chanel entre 1920 e 1930. Mas, afinal de contas, Dior era um retrógrado? Não. Em suas memórias, ele revelou sempre ter desenhado para evocar a “infância feliz e burguesa, um passado cheio de esplendor”, que virou fumaça quando a fortuna familiar foi corroída pela crise.
A redescoberta da cintura fina, hoje, talvez represente uma resposta contra a dureza do cotidiano imposto pela pandemia. Pode não ser, portanto, uma simples marcha a ré. É mais complexo e, por isso mesmo, mais fascinante. Quem sabe não seja apenas vontade de viver — embora se entenda a grita de quem já não aceita a moda como mero instrumento estético. “A cantora Madonna, na década de 80, usou o item como expressão de sensualidade”, diz Carla Cristina Garcia, professora da pós-graduação em psicologia social da PUC de São Paulo.
Seria exagero, é claro, dizer que há uma volta ao Renascimento, quando os corpetes surgiram, assemelhando-se às proteções dos cavaleiros medievais. Só os usa quem quer, e recusar a beleza ancorada no desconforto é em si uma postura de rebeldia. “Mas convém lembrar que o uso de peças que provocam mudanças no corpo é estratégia comum do vestuário desde sempre”, diz João Braga, professor de história da moda da Faap. Ressalte-se ainda, em nome de quem gosta da onda, que não há exatamente contraindicação médica entre mulheres adultas, como faz parecer o desmaio das personagens de Bridgerton, que chegam a perder o ar. “O espartilho só é nocivo às meninas abaixo dos 14 anos ou mulheres com problemas preexistentes na coluna”, diz Marcelo Kokis, ortopedista no Hospital Norte D’or, no Rio. Cabe usá-lo, sim, sem problema, mas com a devida moderação.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734