A revolta dos bobes: o curioso movimento feminino na Coreia do Sul
Trata-se de mais uma expressão do que buscam as novas gerações: livrar-se a todo custo dos padrões estabelecidos

Pátria dos cuidados com a beleza, lastreados por uma pujante indústria de cosméticos, a Coreia do Sul passa por uma reviravolta a que os mais velhos assistem de testa franzida (mas não muito, para não dar rugas): a moda de sair de casa sem se arrumar antes, do jeito que bem entender. Sua manifestação mais evidente é a quantidade de meninas nas ruas, shoppings e metrô com a franja enrolada em um bobe, aquele rolinho plástico que se usava antigamente para dar volume ao penteado. A explicação das meninas para a exibição em público do rolo de cabelo, desde sempre uma arma secreta de embelezamento, é sua total indiferença em relação ao que vão pensar as pessoas que não conhecem — elas querem, isso sim, chegar com a franja impecável no encontro marcado com os amigos que importam.
Faz sentido que a “revolta dos bobes” aconteça na Coreia do Sul, país que aprimorou como poucos o talento para ditar moda e cultura para a juventude do planeta. Circular com um rolo na testa é atitude típica dos adolescentes de uma geração que quer se livrar dos padrões, das obrigações, dos hábitos de consumo e dos preconceitos não só de seus pais, mas de seus irmãos mais velhos. “A moda tem uma função relacionada ao comportamento e está a serviço do dia a dia das pessoas. E elas estão muito mais casuais”, observa Anay Zaffalon, professora de negócios digitais da moda da ESPM. Na mesma Coreia, em 2018, nasceu o movimento “Não ao Espartilho”, que pregava o distanciamento dos modelos estéticos em vigor. “Trata-se de uma juventude para a qual a cobrança de aparência perfeita chegou ao ponto de esgotamento e ela quer claramente se livrar disso”, explica o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio.
O desarrumado que reflete desapego e simplicidade está presente em várias mudanças observadas no retorno às ruas depois de meses de reclusão em casa. O consumidor passou a valorizar produtos que proporcionam bem-estar e aconchego, como os moletons, que nunca ocuparam tanto espaço quanto no guarda-roupa do home office. “Moletons foram o grande destaque do ano e uma das palavras-chave mais buscadas no site”, diz Marcella Kanner, chefe de comunicação corporativa da rede de lojas Riachuelo, onde as vendas do item aumentaram 30% e o faturamento, 60%. A marca Tommy Hilfiger foi mais longe: registrou em 2021 alta de vendas de 680%. Na mesma linha minimalista, a bolsa diminuiu drasticamente. Jovem que é jovem carrega consigo só o mais indispensável, acomodado em uma bolsinha minúscula — o avesso das sacolas da mãe, onde, procurando bem, corre-se o risco de achar até um animal de pequeno porte escondido. Segundo a empresa americana de pesquisa de mercado NPD, a procura pelas minibolsas subiu 14% no primeiro semestre do ano passado, em comparação a igual período de 2019 (em 2020, ninguém teve chance de usar o acessório). “Eu gosto de sair com o essencial, sem me preocupar em carregar peso”, diz a estudante de administração Isabele Madureira, de 21 anos, dando voz a uma geração para a qual também a roupa encolhe. Nunca se viu tanto short e blusa curtinha fora de casa, muitas vezes disfarçados por um camisão aberto que desce até a canela.

Outro alvo da juventude que diz priorizar o simples e confortável são os sutiãs — nada mais reprovável, na tribo dos muito cool, do que as rendas sensuais exaltadas pela inconveniente Victoria’s Secret. Desta vez, pelo menos, a rebelião é pacífica, ao contrário de 1968, quando, em plena revolução feminista, 400 ativistas protestaram em frente ao teatro onde ocorria o concurso Miss America agitando no ar sutiãs e outros itens que simbolizavam a opressão das mulheres. Agora, o impulso vem da turma do despojamento acima de tudo. “No Brasil, a moda é progressista. Não usar sutiã é sinônimo de liberdade, não de vergonha” ressalta a consultora de moda Ieda Rodrigues.
De acordo com o YouGov, instituto de pesquisa britânico, durante o lockdown 34% das mulheres ouvidas disseram ter deixado de vestir a peça e quase metade diminuiu a frequência do uso. “De repente, entendi que não tinha necessidade dele e aposentei”, relata a produtora cultural Yas Lucchesi, 25 anos. Nas mais jovens, quem usa opta quase invariavelmente pelo modelo esportivo, mais confortável e muito menos revelador. Quem sai de casa vestida confortavelmente e carregando o mínimo de tralha possível aplica, coerentemente, pouca ou nenhuma maquiagem: levantamento da mesma YouGov mostra que 43% das garotas que não punham o pé na rua sem batom nem máscara nos cílios passeiam hoje muito mais ao natural do que antes da pandemia. Só falta mesmo a revolução do rolo na franja se espalhar pelo mundo.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772