A frustração — assim como a alegria, a esperança, o medo — é também uma experiência estética: a literatura do século XX abunda em volumes sobre o fascínio do desencanto. Mas não, não vim hoje falar de Kafka ou Céline, mas da série Game of Thrones, da HBO, que nos ofereceu um interessante caso de estudo sobre o poder das sensações partilhadas — ainda que a sensação, no caso, seja algo próximo ao coito interrompido. Ao que me parece, o épico anticlímax não foi culpa apenas dos roteiristas, mas resultado de problemas que já estavam semeados nos livros de George R.R. Martin; e esses problemas estão vinculados a uma das mais antigas querelas da escrita criativa: a oposição entre o que chamo de método platônico e método aristotélico na invenção de uma história.
O método platônico foi descrito de forma insuperável por Edgar Allan Poe no ensaio “A Filosofia da Composição”, de 1846: “Todo enredo, para ser digno desse nome, deve ser elaborado até seu desfecho, antes que se encoste a pena ao papel. É apenas com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um enredo seu indispensável ar de consequência ou causalidade”. Segundo a filosofia de Poe, um barco não deve zarpar sem saber a que porto se dirige: o enredo já existe na mente do autor, e o ato da escrita apenas o recupera — assim como, na teoria platônica, a alma relembra as Ideias que vislumbrou antes de vir à Terra. Já o método aristotélico se parece mais a uma investigação, ou uma jornada sem rumo certo. O ato de escrever não reproduz uma ideia pronta, mas é simultâneo à própria criação: como um barco que explora mares desconhecidos e vai descobrindo novos arquipélagos pelo caminho.
Ambos os métodos têm virtudes e defeitos. O planejamento prévio evita incongruências, mas pode sufocar a imaginação; o improviso atiça a vivacidade, mas às vezes resulta em desfechos desengonçados. Muitos autores preferem um meio-termo. Jorge Luis Borges só se sentava para escrever um conto quando tinha o início e o fim na cabeça — mas improvisava nos estágios intermediários. J.R.R. Tolkien às vezes escrevia um capítulo sem saber o que aconteceria no próximo; mas, chegando ao fim de O Senhor dos Anéis, reescreveu o livro inteiro de trás para frente, aparando arestas — tudo isso antes de publicar o primeiro volume.
E eis aí, oh frustrados e frustradas de todo o mundo, o problema que nos concerne. Os livros da série Game of Thrones foram publicados enquanto o autor inventava a história: o improviso funcionou por milhares de páginas, mas eventualmente a maldição de Poe o apanhou. Impossíveis de serem amarradas, as pontas soltas acabaram enredando o próprio enredo — e o tropeço se transmitiu das páginas à tela. Não quero dizer, com isso, que o modus scribendi de Poe seja o único aceitável; mas o fracasso homérico da maior série de televisão do mundo moderno aponta uma verdade eterna, daquelas que ninguém despreza sem pagar um preço: toda história bem contada é um salto acrobático entre a liberdade e o rigor.
Publicado em VEJA de 5 de junho de 2019, edição nº 2637