‘A Herança dos Bem-Aventurados’: literatura da Nigéria pede passagem
Com seu novo romance, a escritora Ayòbámi Adébáyò retrata a nação que sintetiza as alegrias e conflitos da África moderna
A nigeriana Ayòbámi Adébáyò tinha apenas 2 anos quando seu conterrâneo Wole Soyinka ganhou o Nobel de Literatura — o primeiro para um escritor da África Subsaariana. Na época, em 1986, o prêmio foi visto como um incentivo para o mundo africano das letras se globalizar e se livrar de adjetivos preconceituosos como “exótico” ou “tribal”. Menos de quatro décadas depois, o continente já conquistou seu espaço. A Nigéria se destaca e, agora uma adulta de 35 anos, Ayòbámi lidera uma talentosa safra de escritores do país com repercussão global.
Acaba de sair no Brasil A Herança dos Bem-Aventurados, segundo romance da autora, publicado concomitantemente na Nigéria, Reino Unido e Estados Unidos (escrever em inglês ajuda na conquista global). O livro conta a história de dois jovens que vivem realidades distintas numa mesma cidade. Eniolá é um adolescente de 16 anos e quer continuar estudando num colégio particular, mas seu pai está desempregado e sua família mal consegue se alimentar regularmente. Wúràolá é uma brilhante jovem médica de 28 anos que está fazendo residência e se prepara para seu casamento. Enquanto a vida de Eniolá é uma incógnita devido às batalhas diárias de sua família em busca de bicos, empréstimos, favores e até mendicância, o sucesso de Wúràolá foi planejado desde o berço. Filha de uma família abastada e influente, ela apenas segue o projeto de seus pais, garantindo uma ótima carreira e prestes a se casar com um jovem de sua classe social.
Os capítulos alternam-se entre os dois protagonistas, mas aos poucos as histórias se cruzam de modo inesperado, mas verossímil. O último terço do livro é de tirar o fôlego, cheio de acontecimentos arrebatadores. Com escrita envolvente e descrições precisas, a autora salpica a narrativa com diversas expressões em iorubá, uma das mais de cinco centenas de línguas vivas da Nigéria. Pena que a edição brasileira não traga notas as traduzindo: perde-se um pouco do tempero local e da força da obra original.
Apesar do deslize no lançamento, o talento de Ayòbámi revela-se atrás do enredo aparentemente simples. É na paisagem social, nos contextos e relações dos personagens que as tensões emergem com força. O pai de Eniolá foi um estudante dedicado que se formou em história, mas não consegue emprego como professor. Já o namorado de Wúràolá foi um aluno regular e não trabalha, mas ajuda a carreira política de seu pai.
Com a maior população e economia da África, a Nigéria costuma ser apontada como um “país do futuro” — epíteto que os brasileiros conhecem bem, com conotações de dádiva ou maldição. Colônia britânica até 1960, o país atravessou uma violenta guerra civil e ditaduras militares. A democracia só chegaria em 1999. Sétima maior exportadora de petróleo do mundo, a nação vem conseguindo se estruturar financeiramente, mas ainda não obteve êxito em aplacar a miséria, enorme desigualdade social, corrupção e uma constante tensão política que com frequência explode em episódios violentos.
É essa a Nigéria tão bem retratada por Ayòbámi: um país que luta para se desenvolver, mas ainda está amarrado a seus problemas sociais e políticos. Miseráveis e ricos frequentam os mesmos mercados de ruas, contatos contam mais que diplomas, brutalidade e ternura convivem na mesma sociedade. A mãe e as tias de Wúràolá combatem o machismo de seus maridos com ganância e obstinação: são leoas que, à sua maneira, lutam por um futuro para suas proles. Os amigos de Eniolá querem celulares novos e roupas da moda, nem que para isso tenham de se envolver com crimes. Patriarcas ricos entram na política por objetivos pessoais, e usam o poder como uma ferramenta para enriquecimento e prestígio. Ainda assim, a Nigéria de Ayòbámi revela uma maravilhosa paleta de humanidade, afeto e alegria na mesma proporção que abriga violência, cobiça e tristeza.
Num ensaio dos anos 80, no calor do Nobel de Soyinka, o africanista americano Bernth Lindfors escreveu que o nigeriano tinha “batido o homem branco em seu próprio jogo”, a literatura. Se a escritora Chimamanda Adichie tornou-se uma best-seller mundial made in Nigéria e Uzodinma Iweala teve seu Feras de Lugar Nenhum adaptado e popularizado num filme da Netflix, Ayòbámi surge como uma das mais promissoras seguidoras dos passos de Soyinka. Não é pouco.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849
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