A ferrenha disputa pela herança de Alain Delon
Depois de anunciar que pretende abreviar a própria vida, o mais celebrado galã francês vê os filhos se engalfinharem
A coisa anda feia para Alain Delon. Em cinco décadas de carreira, o galã francês deu vida a personagens icônicos do cinema europeu. Dono de talento especial e beleza estonteante, arrancou suspiros e aplausos em filmes que se tornaram clássicos graças a sua atuação, como O Sol por Testemunha e Rocco e Seus Irmãos, ambos de 1960. Afastado das telas desde 2008, Delon vive uma melancólica aposentadoria. Aos 88 anos, com quadro de grave degeneração cognitiva, depois de um derrame cerebral, ele espera a morte chegar em sua mansão em Douchy, no norte da França. Há dois anos, externou o desejo de pôr fim à própria vida com um suicídio assistido na Suíça, país do qual também tem cidadania e que permite a prática (Jean-Luc Godard morreu desse modo, em 2022). Mas o roteiro está longe de ter um epílogo: os três filhos do ator travam uma ferrenha batalha fratricida por dinheiro e envolta em mentiras.
O caso veio à tona quando o primogênito, Anthony, 59 anos, fruto do primeiro casamento de Alain com a atriz Nathalie Barthélémy, concedeu uma entrevista à revista Paris Match, no início do ano. Contou que o pai estava “enfraquecido”, “debilitado” e “farto de viver”, mas a fragilidade teria sido omitida pela irmã do meio, Anouchka, 33 anos, que teria escondido uma bateria de exames médicos de prognóstico ruim. O caçula Alain-Fabien, 29 anos, também apontou o dedo para Anouchka, com quem compartilha a mãe — ambos são filhos da modelo Rosalie van Breemen, que foi casada com o bonitão por catorze anos. As acusações dos irmãos: a irmã do meio estaria facilitando os passos de uma namorada de Delon, Hiromi Rollin, de 60 anos. Ela estaria de olho em pedaço da herança, avaliada em 300 milhões de euros.
O intrincado barraco se transferiu para a Justiça em um enredo rocambolesco. Anthony processou a irmã Anouchka para impedir que o pai fosse para a Suíça, a caminho da morte assistida. Anouchka contra-atacou com uma ação por calúnia e difamação, alegando que apenas se esqueceu de apresentar os laudos que tratavam da situação clínica dele. Em conluio, o advogado da família chegou a publicar uma nota anunciando que Delon também apresentaria queixa contra o filho mais velho por “estar extremamente chocado com a cobertura midiática de sua intimidade”. O defensor, porém, acabou sendo demitido pela própria Anouchka, sob o pretexto de “ter falado coisas demais em seu nome”. Na batalha dos tribunais, Alain-Fabien, que morava com o pai em Douchy, também denunciou a irmã. Hiromi foi simplesmente afastada pela família.
O escândalo prosseguiu nas páginas da imprensa, em interminável vaivém que saiu das fronteiras da França para invadir o restante da Europa. A filha contou que toda vez que ia visitar o pai era obrigada a conviver com a presença ostensiva de um agente de segurança em sua cola e que seus irmãos andariam armados pela propriedade. O clima seria tão hostil que ela evitava levar o filho de 4 anos para ver o avô. A declaração motivou uma batida policial na mansão que acabou por apreender um imenso arsenal de guerra, composto por 72 armas e mais de 3 000 munições. Anouchka relatou ainda receber frequentes ameaças dos fãs do ator e que alimenta pensamentos suicidas ao lembrar das queixas e acusações de seus irmãos. “Não durmo mais, não como mais, quero que isso pare”, desabafou.
Diante de tantos interesses e declarações conflitantes, o juiz do caso nomeou um novo tutor que responde ao Estado para representar o ator moribundo. “A decisão judicial sugere que Alain Delon deve ser protegido, devido ao seu estado de saúde e capacidades diminuídas”, afirma o advogado francês especialista em sucessão, Louis Laï-Kane-Chéong. Tamanha discussão alimenta rumores de que tudo não passaria de uma lamentável briga por dinheiro, embora as partes neguem o que soa para lá de evidente. Em testamento, o astro deixou metade da herança para a filha, sua favorita, enquanto os dois descendentes do gênero masculino ficaram com um quarto cada. Anouchka estaria apressando o processo de suicídio ao convencer o pai a ir para a Suíça, de onde nunca mais voltaria.
Em 2022, ao anunciar o desejo de acelerar o desfecho, Delon disse, como quem decreta o fim da fita: “Minha vida foi bela, mas também difícil”. Uma dica de início do filme-dramalhão que contaria as desventuras da trupe, de Anouchka e seus irmãos, inspirada nas primeiras linhas do clássico Anna Kariênina, de Liev Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883