A esfinge decifrada
Os dois volumes da correspondência entre Getúlio Vargas e Alzira, sua filha, iluminam um momento-chave na trajetória do maior vulto da política nacional
Nem a morte impediu Alzira Vargas do Amaral Peixoto de concluir, pelas mãos da filha Celina, o magnífico painel que escancara a mente, o coração, a alma e as vísceras do maior dos protagonistas da política brasileira. Ninguém mais poderia consumar tal façanha. Filha predileta de Getúlio Dornelles Vargas, ela foi secretária particular do líder da Revolução de 1930, arquivista do chefe do Estado Novo, confessora do ex-ditador exilado no Rio Grande do Sul e a única confidente do presidente constitucional. Depois do suicídio do pai, dedicou-se à busca de manuscritos que Vargas guardara em esconderijos que julgava inalcançáveis. Por ter achado todos, Alzira pôde contemplar em sua inteireza a singularíssima complexidade do personagem que governou o Brasil por quase vinte anos. Partiu em 1992 sem ter contado tudo o que viu e soube, mas não levou para o túmulo o acervo de segredos. Deixou para Celina Vargas do Amaral Peixoto a tarefa de localizar as peças que faltavam para completar o mosaico esboçado em 1960 com a publicação de Getúlio Vargas, Meu Pai. Quase sessenta anos depois dessa pioneira incursão pelos labirintos interiores de um introvertido vocacional, Volta ao Poder — a correspondência entre Vargas e Alzira, organizada pelas pesquisadoras Adelina Novaes e Cruz e Regina da Luz Moreira — encerra a missão assumida pela filha e pela neta da lenda. A Grande Esfinge foi devassada.
A couraça que envolvia um amante da privacidade inviolável que preferia ouvir a falar foi perfurada em 1995, quando as anotações feitas por Getúlio entre 1930 e 1942 em cadernos que não mostrava a ninguém foram reunidas no Diário, uma catarata de revelações apimentadas por aventuras amorosas e avaliações ferozes de antigos aliados. Em 2017, trechos da correspondência entre pai e filha enriqueceram a edição ampliada do livro de memórias de Alzira. Em 2018, a publicação de 568 cartas e bilhetes finalmente eliminou o buraco negro que adiava a completa reconstituição da saga getuliana. Ainda que se tivessem limitado a resgatar o dia a dia de Vargas entre janeiro de 1946 e dezembro de 1950, os dois volumes já seriam uma leitura essencial. Como vai muito além desse registro histórico, Volta ao Poder tem vaga assegurada na estante das urgências urgentíssimas. Entre outros desdobramentos encantadores, a intensa troca de manuscritos conta a história de dois temperamentos quase antagônicos que os laços de sangue e a paixão pela arte da política transformaram em parceiros complementares — e assombrosamente afinados.
Sem um pai como aquele, ela não teria aprendido a mover-se com tamanha astúcia por territórios infestados de tocaias e armadilhas. Sem uma filha como aquela, ele dificilmente se teria animado a tentar o regresso ao Palácio do Catete pela mais sinuosa das rotas. E não haveria final feliz se Rapariguinha, como era identificada pelo pai a filha que frequentemente o tratava por Gê, ou Gegê, não fosse provida de um estoque infinito de paciência e humor. O sessentão cansado de guerras flertava teimosamente com a aposentadoria repelida pela vulcânica balzaquiana, que insistia na retomada da rotina de combates. O pessimista vocacional suspeitava que a deposição fora o prenúncio da morte política e se afligia com a profusão de pedras no caminho. A otimista juramentada tratava de removê-las prontamente, por enxergar no fim do ditador o começo da gestação do presidente constitucional.
As cartas de Getúlio, quase sempre curtas, são um desfile de lamentos e encomendas. Em tom rabugento, ele se queixa da demora na chegada de charutos, barbitúricos, camisas, cuecas, sementes de plantas, revistas de palavras cruzadas, cartas e visitantes. Em respostas extensas e minuciosas, Alzira relata as providências tomadas para que nada ficasse sem atendimento ou solução. Sem que se interrompa a enxurrada de solicitações prosaicas, vai aumentando progressivamente a demanda por notícias sobre os bastidores do quadro político até que, numa carta datada de 1º de novembro de 1946, seja ultrapassado o ponto de não retorno. “Minha filha (Rapariguinha)”, lê-se na primeira linha, que fundiu pela única vez as duas formas de tratamento usadas pelo remetente. O restante da mensagem avisa, em linguagem codificada, que chegara ao fim a procissão de dúvidas, incertezas e interrogações, invariavelmente rebatidas por Alzirinha com argumentos poderosos, observações irônicas e sugestões sensatas. O gaúcho que se antecipava a aliados ou inimigos na adivinhação da mudança dos ventos entendera que era hora de regressar pelo caminho das urnas ao coração do poder alcançado, vinte anos antes, pelo atalho da insurreição armada.
“Tenho pena sempre que sou forçado a sobrecarregar-te com novas incumbências, além das que já tens e não devem ser abandonadas”, ressalva Getúlio na carta que seria o marco zero do caminho que o devolveria ao Catete. “É difícil, porém, encontrar uma pessoa em que eu possa confiar tão completamente como em ti.” Admiravelmente ubíqua, Alzira continuou suprindo o pai exigente, seguiu gerenciando a casa que dividia com o marido, a filha e a mãe (Darcy permanecera no Rio quando o ditador deposto partiu) e assumiu o comando dos trabalhos de parto da campanha eleitoral que ajudara a conceber. Antes daquela carta, ela era a Ação a serviço do Pensamento alojado numa estância gaúcha. Nos meses seguintes, o desempenho da estrategista onipresente e sagaz fundiria numa só entidade o veterano político que pensava e a jovem ativista que fazia. Esse fenômeno fez de Alzira uma das raríssimas personagens capazes de repreender o líder que passou a maior parte da vida dando ordens. “Vejo que nossas ondas não estão sintonizando em absoluto”, comunicou Rapariguinha em novembro de 1950 ao presidente eleito. “De modo que em vez de notícias hoje quero te falar de consciência a consciência para ver se posso continuar trabalhando, ou se é melhor largar o fio, que consegui retomar a duras penas.”
Eis aí, aliás, um dos prazeres adicionais proporcionados pela copiosa correspondência. Volta ao Poder deposita o leitor num Brasil que, embora atormentado por manifestações de primitivismo, abriga homens e mulheres que assumem ares de estadistas se confrontados com seus sucessores em circulação no século XXI. No país exumado pelo livro, a língua portuguesa é tratada com carinho e respeito. Personagens históricos são identificados por apelidos que ironizam sem machucar (o presidente Eurico Dutra, por exemplo, é o Grão de Bico). As frequentes queixas de Getúlio sobre a falta de dinheiro desmoralizam a falácia segundo a qual a corrupção aportou nestas paragens com as primeiras caravelas. Os manuscritos trocados por Getúlio e Alzira Vargas exibem convincentes manifestações ao Brasil e reafirmam que a honradez não é incompatível com a atividade política — ainda que a oposição mais tarde buscasse vincular Vargas ao proverbial “mar de lama”. Não faz tanto tempo assim, quem diria, era possível ser presidente da República e honesto.
Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616