Trinta anos depois da morte de Audrey Hepburn, atriz ainda dita moda
O segredo está no avesso da arrogância: a simplicidade transformada em luxo
O sol acabara de nascer. Um táxi amarelo avança pela Quinta Avenida de Nova York ao som de Moon River, de Henry Mancini. O carro para e dele sai uma mulher vestida com um pretinho básico assinado por Hubert de Givenchy, um coque a desafiar as leis da gravidade, óculos escuros e joias imaculadamente alvas pousadas na nuca. Ela tira de um saco plástico um croissant, ergue a cabeça e mira com genuína admiração a vitrine da mítica Tiffany & Co. E então os créditos informam, em letras amarelas: Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, na versão em português, filme inspirado em livro de Truman Capote. São pouco mais de dois minutos — mas com a força de reconstruir o passado e pavimentar o futuro. Audrey já era conhecida, tinha levado o Oscar de melhor atriz em 1954 por sua atuação pelas ruas de Roma, na garupa de Gregory Peck, no engraçadinho A Princesa e o Plebeu. Mas em Bonequinha, dirigido por Blake Edwards, na pele da personagem Holly Golightly, uma acompanhante de luxo que sonha com Hollywood, nascia um mito de sobriedade e austeridade.
Audrey morreu há trinta anos — seu legado, contudo, permanece vivo. Virou sinônimo de elegância que parece não sair de moda. Ao transitar entre a sofisticação da alta-costura e o conforto do prêt-à-porter com seu corpo delicado, sem curvas, traços exóticos e cabelos curtos, a atriz nascida na Bélgica — criada pela mãe e abandonada pelo pai, simpatizante do nazismo — esteve à frente de seu tempo, e ainda hoje soa assim. Beber do estilo de Audrey é acertar na mosca, sem exagero ou estridência.
Ela está nas passarelas de Paris e Milão, em coleções de estilistas como Oscar de la Renta e Valentino — além, é claro, da Givenchy, grife pela qual foi sempre associada, depois de anos de parceria com o primeiríssimo criador da casa. Emily Cooper, personagem fashionista de Lily Collins na série Emily em Paris, sucesso da Netflix, por exemplo, é evidentemente inspirada na figura clássica da atriz, inclusive no modo com o qual desce as escadas, como se teclasse um piano. Meghan Markle, a duquesa de Sussex, que não é boba nem nada, outro dia mesmo apareceu vestida com um corte atrelado a Audrey. A lista de nomes inspirados por ela vai longe: Lady Gaga, Beyoncé, Gwyneth Paltrow, Anne Hathaway etc. Seguem o conselho original da bonequinha — que de bonequinha não tinha nada, firme na condição de estrela global, a um só tempo sofisticada e minimalista, em postura que nunca sai de cena: “Meu visual é fácil de copiar. Basta prender o cabelo, comprar óculos de sol grandes e colocar um vestidinho sem manga”, disse certa vez. Dito assim, parece como brincadeira de criança. Não é.
A simplicidade é uma conquista muitas vezes inalcançável. Dá trabalho, mas vale a pena, sobretudo quando existe um espelho para o qual olhar. “Audrey é a personificação do ideal feminino”, diz Lorenzo Merlino, estilista e professor de moda da Faap, em São Paulo. Não se trata, é sempre bom ressaltar, da celebração da magreza, de uma estética que absurdamente exclui muitas mulheres. A admiração por Audrey é de outra ordem, é o avesso da ostentação. É comportamento que combina com os humores de hoje, embebidos de desconforto com a pandemia, as dores das guerras e a extrema desigualdade social. Um pretinho básico sempre ajuda.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835