“Sobrevivi ao preconceito porque nunca liguei para ele”, diz Celso Kamura
Cabeleireiro e maquiador de Angélica e Grazi, ele foi o pioneiro da beleza no Brasil. Para VEJA, fala de sucesso, educação e de como Dilma o popularizou
Este ano, o beauty artist Celso Kamura completa 45 anos de carreira. Uma data importante para ele, mas também para o Brasil, já que seu pioneirismo na área vai muito além de uma simples trajetória. Graças a ele, e sua enorme visibilidade, além de nomes como Wanderley Nunes e Marco Antônio de Biaggi, os ofícios de cabeleireiro e maquiador se tornaram profissões – hoje, inclusive, desejadas como primeira opção, bem remuneradas e reconhecidas por lei. Também por sua força de vontade, resiliência aos preconceitos e situações difíceis e senso empreendedor, em um mercado que só no ano passado, movimentou mais de 3 bilhões de reais no Brasil, aumento de 13%, em relação a 2022. “Sobrevivi ao preconceito porque nunca liguei para ele”, argumenta.
“Ajudou muito o mercado de beleza porque antes ninguém trabalhava com tranquilidade. Agora, temos mais segurança, tanto o empregador quanto os profissionais”, diz Kamura a VEJA, referindo-se à Lei do Salão-Parceiro, que regularizou a contratação de cabeleireiros, esteticistas, barbeiros, depiladores, maquiadores e manicures como profissionais autônomos e foi implementada em 2012, pela ex-presidenta Dilma Roussef, uma das clientes mais famosas de Kamura.
As estrelas e a presidenta
“Dilma me popularizou. Antes dela eu achava que era famoso, mas era nada. Depois dela, sou reconhecido até em posto de gasolina. Em todo lugar, é uma loucura”, sorri o beauty artist, carinhosamente chamado por Dilma de “Kamurete”. “Ela deve ter ouvido falar porque Angélica também me chama assim”, entrega, sobre a apresentadora, que também faz parte da constelação de estrelas atendidas por ele e que acabaram se tornando amigas – incluem-se ainda nomes como Ana Hickmann e Patrícia Poeta. “Celebridade dá trabalho (risos). Por isso, prefiro cuidar de algumas, mas muito bem”, comenta.
Atendimento, aliás, é o que ele mais preza em seus dois salões CKamura, em São Paulo e no Rio de Janeiro; e em seus salões licenciados, Celso Kamura, em Moema, Vila Olímpia, Campinas e Indaiatuba, em São Paulo e, São Luís (MA). “É o que faz a diferença, o que mantém as clientes”, afirma. Tanto que é um dos principais ensinamentos dos cursos profissionalizantes ministrados na sua EBN – Escola de Beleza e Negócios, que inaugurou em janeiro na Avenida Paulista, ao lado da educadora Gabriela Gusmão. “Sempre foi um sonho poder educar. Até porque não se é cabeleireiro só sabendo fazer uma escova progressiva”, enfatiza.
A beleza da educação
“Na escola, vamos formar profissionais e assistentes que possam trabalhar em qualquer salão de luxo, ensinando não só a parte técnica, como também comportamental, digital e financeira”, completa sobre a instituição que tem todos os cursos certificado do Ministério da Educação (MEC) e ainda promove um projeto social para formar alunos em situação de vulnerabilidade a cada dois meses. “O mercado de beleza me proporcionou realizar muitos sonhos, conhecer o mundo e pessoas maravilhosas. A EBN será o meu legado”, diz Kamura.
Confira a entrevista exclusiva de Celso Kamura a VEJA:
VEJA: Depois de tantos anos, resolveu abrir uma escola para formar profissionais de beleza. Algo que, na verdade, continua sua história de pioneirismo na área de beleza e a luta para profissionalizar a profissão de cabeleireiro e maquiador. Por que agora?
Celso Kamura: A escola é um sonho que eu sempre tive de treinar e educar as pessoas. Quase abri antes da pandemia, mas agora me senti mais seguro porque tenho a Gabriela Gusmão como parceira, que sempre trabalhou com educação e tem experiência e didática. Até porque não é uma escola comum, como a gente vê por aí que ensina a técnica bem mais ou menos, e chega na hora, o profissional não é profissional, sai assistente. Ensinamos tudo, desde o básico até como prestar um bom atendimento, se comportar, fazer uma foto para as redes sociais e até gerir um negócio. E temos os cursos de especializações para profissionais que já estão no mercado.
VEJA: Essa área precisa de constante atualização, não é?
CK: Com certeza. Com a rapidez das redes sociais, muitos profissionais que estão no mercado acham que porque sabem fazer uma mecha ou uma escova progressiva, já são cabeleireiros. Mas não são. Geralmente quem faz um curso básico, vira assistente e precisa da experiência de um salão até porque não sabem nem como pentear um cabelo ou fazer um rabo de cavalo. Na EBN, a intenção é formar profissionais que possam trabalhar em qualquer salão de alto padrão. Além disso, estamos fazendo um trabalho social, formando pelo menos 15 alunos em situação de vulnerabilidade social a cada dois meses – os primeiros alunos, inclusive, já estão empregados em grandes salões em São Paulo.
VEJA: Mas você é um exemplo de autodidata?
CK: Sou autodidata, mas eu sou de outra época. Agora é tudo mais difícil, nós vemos a dificuldade que é contratar assistentes e cabeleireiros para o salão. Conversei muito com o Biaggi e com o Wanderley Nunes, e percebi que isso também é um problema para eles, então quero ter um celeiro de profissionais qualificados para esses salões. E definitivamente descobrir artistas. Esse vai ser meu legado.
VEJA: E lá se vão 45 anos de carreira. Como descobriu esse talento para a beleza?
CK: Quando tinha 16 anos, eu trabalhava num escritório de contabilidade em São Paulo e detestava. Mas também não sabia o que queria fazer. Um dia, um vizinho, que era cabeleireiro, me convidou para fazer um teste no salão onde ele trabalhava. Era final dos anos 70, comecei com maquiagem, as pessoas adoraram e eu mais ainda. Sou muito intuitivo, tenho ideias e quero fazer. Fiquei um ano como maquiador até que aprendi a cortar cabelo. Era mais fácil porque naquela época, a moda de cabelo era única, só mudava o comprimento, e se a escova era para dentro ou para fora.
VEJA: Mas quando percebeu que poderia fazer alguma diferença nesse mercado, que nem mercado era naquela época?
Quando fui para Paris em 1982. Fiz um curso lá com os melhores cabeleireiros da França, mas mais do que técnicas, eu percebi o quanto o cabeleireiro era importante na sociedade. Tinham orgulho da profissão, bem diferente daqui. Voltei me sentindo mais seguro do que estava fazendo e isso me ajudou muito a desenvolver o meu trabalho porque perdi o medo e me tornei mais criativo. Foi um divisor de águas.
VEJA: Então resolveu empreender?
CK: Antes, resolvi que queria fazer capas de revista. Na época, só existia uma agência que trabalhava com todas as publicações e consegui entrar. Comecei fazendo fotos de matérias de comportamento, que demorava dois meses para sair, mas eu adorava aquilo. Depois veio a moda até chegar as capas. Foi quando eu tive a ideia de montar o CKamura, no Campo Belo, que misturava salão e estúdio fotográfico e virou uma referência justamente porque fazia revista. Naquela época, também estava começando o São Paulo Fashion Week, onde eu passei a assinar os desfiles do Alexandre Herchcovitch. Aí veio o pessoal da moda, depois as celebridades começaram a frequentar o salão e eu cismei que queria abrir um salão na Anália Franco, na Zona Leste. Achei uma casa, peguei um financiamento no banco e comprei. Só que ao iniciar a reforma, uma construtora me procurou para construir um condomínio e vendi pelo triplo. Monetizei e abri nos Jardins. Para a reforma, precisava de 100 mil reais. Pedi patrocínio para a L´Oreal, que me negou. Aí bati na porta da Wella, que me deram na hora e com quem assinei um contrato de quatro anos. Estou com eles até hoje, que sou embaixador criativo.
VEJA: Olhando para trás, como vê esse feito de ser o primeiro a elevar esses ofícios de cabeleireiro e maquiador como profissão?
CK: É muito difícil reconhecer algo que a gente fez. Posso dizer que sinto orgulho. Mas não foi um sacrifício, e sim uma coisa que aconteceu naturalmente. Hoje, graças a tudo isso, me sinto uma pessoa realizada, mas também sei que não acabou, entende? Tanto que estou fazendo a escola.
VEJA: O que mudou muito, daquele tempo para cá?
CK: Hoje, a beleza é mais democrática, mas existe muita enganação por conta das redes sociais. Muitos cabeleireiros mostram uma coisa na internet, e na hora, não conseguem chegar naquele resultado. Agora, se a pessoa é bem atendida, ela volta.
VEJA: Já pensou em desistir?
CK: Deus me livre, não. Nunca pensei não. Acho que na hora que eu parar de atender clientes, vou fazer outra coisa. Vou ficar na escola, vou visitar uns salões. Penso em diminuir, mas parar nunca.
VEJA: Ainda falando dos 45 anos, você tem descendência japonesa, é gay, tem esse cabelo comprido. Sofreu algum preconceito durante essa trajetória?
CK: Eu fui pintosa a vida inteira, desde criança. É claro que tinha muito preconceito, principalmente nos anos 70, 80, mas eu sobrevivi porque nunca liguei para ele. Eu sabia que era diferente e que tinha que aguentar as consequências. Jamais fiz nada para me esconder. Graças a Deus, a profissão me tornou conhecido e me deu segurança e respeito, mas sempre tinham aqueles olhares, só que eu não dava confiança. Continuo sendo assim. Aquela época era mais complicada, mas eu nunca sofri por causa disso, não.
VEJA: Você também ajudou na construção do mercado de moda. Por que a moda não está mais tão na moda?
CK: Eu acho que a moda virou muito comercial. Eu fiz os desfiles do Alexandre em Paris, Londres, Nova York, e é claro que antes, era dado um valor muito maior para a criação, a roupa, a criatividade. Hoje, o foco são vendas. A moda virou um comércio.
VEJA: Angélica está com você há muitos anos, Grazi Massafera é sua fã de carteirinha. Como manter essas estrelas fieis?
CK: Celebridade dá muito trabalho (risos). Não dá para querer abraçar todas, então cuido muito bem das que eu atendo como Angélica, Grazi, Patrícia Poeta, Ana Hickmann. Elas têm história comigo e além de atender muito bem e sempre mostrar algo novo, também é importante não dar furo e manter a discrição.
VEJA: Alguma história memorável?
CK: Acho que foi o dia que eu conheci e conquistei a Angélica. Foi na época em que ela estava se transformando, deixando de trabalhar com criança, virando mulher. Me chamaram para fazer uma capa de revista com ela, que estava marcada para às 13hs hora no Copacabana Palace, no Rio, para pegar a luz do dia. Só que ela só conseguiu chegar às 16hs. Eu vi aquele monte de cabelo, escovei, botei umas mechas pretas e vermelhas, deixei o olho bem marcado e deixei pronta muito rápido. Ela fez as fotos e às 18hs já tinha acabado. Ela gostou do resultado, mas também da minha rapidez. Desde então estou com ela, há quase 30 anos.
VEJA: Angélica te deixou conhecido, mas a fama veio com a Dilma Roussef, não é?
CK: A Dilma me popularizou. Eu já me achava famosérrimo, mas quando ela pintou o cabelo comigo, passei a ser reconhecido em qualquer canto do país, fiquei famoso até em posto de gasolina (risos). Cada um me apresentou para um mundo: o Alexandre para o mundo da moda, a Angélica para o mundo das celebridades, a Martha Suplicy para a política e sociedade paulistana e a Dilma me popularizou de vez.
VEJA: Dilma te chama de “kamurete”. De onde saiu esse apelido?
CK: Acho que ela ouviu falar porque a Angélica e a Grazi já me chamavam assim. Mas foi algo que me marcou muito porque eu realmente fiz uma mudança na Dilma. Ela tinha feito quimioterapia e o cabelo já estava grande. Apesar da fama de difícil, ela foi um amor comigo e deixou eu fazer tudo: cortar, pintar, clarear, maquiar. Foi engraçado porque ela tinha vindo de uma coletiva com a imprensa de manhã, fiz tudo na hora do almoço e, logo depois, teve outro evento com a mesma imprensa. Aí só falaram disso né? Apareceu completamente transformada. Teve matéria até no New York Times e disseram que o visual dela tinha alavancado as pesquisas.
VEJA: Como foi esse tempo cuidando dela como presidenta da República? Ainda cuida dela?
CK: Sim, cuido. Conheci o Brasil por causa dela. Tenho uma relação maravilhosa com ela, que diz que eu a acalmo. Na época da presidência, cansei de pegar avião para ir vê-la, acalmá-la e cuidar da beleza dela. Porque política é um mundo muito diferente do meu, e eu levava esse lado mais leve, mas lúdico para ela. Foram seis anos puxados, indo e voltando de Brasília, às vezes tinha que fazer o cabelo muito rápido no aeroporto. Sabe os dramas? Já lavei o cabelo da Dilma no banheiro do aeroporto.
VEJA: Quem você gostaria de cuidar?
CK: A Vera Fisher. Ela é um ícone de beleza e sempre esteve na minha cabeça. Eu a conheço, já fomos apresentados, mas nunca fiz. É uma coisa de muito tempo, mas ela é uma mulher da beleza.
VEJA: E o futuro da beleza, como vê?
CK: O Brasil cresceu muito, hoje somos reconhecidos no mundo inteiro e tem muita gente nova interessada em beleza. Só tem que estudar, ter técnica, se profissionalizar, se atualizar e sempre, prestar um excelente atendimento. Esse é o segredo. Mas sou muito otimista com o Brasil.