‘Sem reparação, não vai haver equidade’, diz autor do Projeto Querino
Tiago Rogero falou a VEJA sobre antirracismo, a idealização do podcast e o processo de transformação de áudio em livro
Em 28 de julho de 1851, nasceu, na Bahia, Manuel Querino. Artista, historiador, político e escritor, ele seria um dos intelectuais mais importantes do seu tempo, responsável por registrar a contribuição da diáspora africana para a cultura brasileira. A história, contaminada por motivações identitárias, foi ingrata com a sua contribuição, escondendo o intelectual em alguns poucos registros – o que não impediu que, agora, justiça fosse feita.
Mais de um século após a sua morte, em 1923, a alcunha de Querino volta a ganhar as prateleiras. Isso porque ele dá nome a um dos esforços de reconstrução histórica brasileira mais impactantes dos últimos tempos. Inaugurado como podcast, em 2022, e vencedor do prêmio Vladimir Herzog no ano seguinte, o Projeto Querino (Ed. Fósfora) agora é publicado como livro e se empenha em recontar a história do Brasil a partir de um ponto de vista afrocentrado.
A mente por trás desse projeto é Tiago Rogero. Hoje correspondente do britânico The Guardian, ele contou com a ajuda de uma equipe de 40 pessoas para fazer uma profunda investigação historiográfica na cultura brasileira. Em entrevista a VEJA, Rogero fala sobre as motivações por trás do projeto, seus objetivos e as escolhas difíceis do processo de transformar em livro um conteúdo que nasceu como áudio.
Qual a motivação por trás do projeto Querino? O Rio tem essa coisa maravilhosa dos eventos na rua e um deles é o LER, um festival literário. Em uma entrevista da Conceição Evaristo para a Flavia Oliveira, ela fala a frase que mudou tudo para mim: ensinam a revolução farroupilha nas escolas, mas não a revolta dos malês. Era uma época que eu estava querendo fazer algum podcast, porque eu gostava da mídia, e naquele momento tive uma epifania de tentar contar essas histórias que eu não aprendi. Pouco tempo antes eu tinha lido Na Minha Pele, do Lázaro Ramos, que foi o primeiro livro sobre a temática racial que eu li. Acho que isso toca em muitos lugares, em especial por eu estar em um momento de autodescoberta.
Agora, esse vai se tornar um projeto educacional, correto? Das várias realizações que o projeto poderia ter, para mim essa é das mais prazerosas. Esse é um projeto educacional que está sendo feito pelo Itaú Social em parceria com o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, da professora Cida Bento. Na plataforma vão ter trechos recortados do podcast e indicações de leituras adicionais, que os professores vão poder utilizar gratuitamente. Então, por exemplo, se ele quiser falar sobre a lei para inglês ver, vai ter um trecho já recortado para ele não precisar tocar o podcast inteiro. Além disso, no site da Fósforo vai ter um guia para professores que quiserem utilizar o livro em sala de aula, mais ou menos nos mesmos moldes. É um material bem interessante.
A que você acha que se deve o sucesso desse projeto? É possível dizer que existia uma demanda reprimida para ouvir essas histórias? Nós não somos os primeiros a contribuir com isso, bebemos muito do conteúdo que está sendo produzido na academia e na literatura, mas acredito, sim, em uma demanda reprimida que ainda existe. Isso explica parte do sucesso, mas uma outra razão é o fato de ele ter sido feito por pessoas negras que, no geral, não tem muita oportunidade de mostrar o seu talento no mercado jornalístico e audiovisual. Elas têm um talento sublime, então o resultado também é uma produção sublime. Por último, acho que o contexto também ajudou. O Querino é lançado em 2022, depois de quatro anos de um governo que estava destruindo política social, política ambiental, política macroeconômica e segurança pública. O governo estava destruindo tudo e o povo estava desesperado por mudança. Acho que o podcast forneceu ferramentas para ajudar as pessoas a passarem por aquela tormenta.
Logo na introdução do livro, o senhor comenta sobre a escolha ativa por manter, no livro, as menções ao governo Bolsonaro. Isso não pode deixar a obra datada? Existem muitas menções ao governo Bolsonaro no livro, mas não são tantas que façam parecer, por exemplo, que o livro está associado especificamente àquele momento histórico. O livro não é uma resposta ao Bolsonaro nem à extrema-direita, porque ele existiria de qualquer forma, mas ele nasce nesse momento e acho importante manter esse retrato histórico. Além disso, o bolsonarismo não acabou. Recentemente vimos um atentado que foi uma continuação do movimento golpista e nós sabemos que, mesmo se o Bolsonaro não participar da próxima eleição, ele vai ter alguém o representando. É importante manter o registro por esses dois motivos.
E você se preocupa que o Projeto Querino seja enquadrado na caixinha do identitarismo? Nunca foi preocupação, porque, em geral, as pessoas que usam esse termo de forma pejorativa são pessoas cuja opinião não me interessa muito. São pessoas sem estofo intelectual, sem retórica discursiva e com uma visão retrógrada e ultrapassada do mundo. Além disso, sempre gosto de lembrar que, no Brasil, o grupo identitário dominante é o das pessoas brancas, em especial dos homens brancos. As produções literárias, jornalísticas e cinematográficas, por exemplo, sempre seguiram as normas desse grupo identitário. Esse tipo de papo é feito justamente para manter no poder quem usa do identitarismo para menosprezar tudo o que pode abalar as estruturas de privilégios.
“O grupo identitário dominante é o das pessoas brancas, em especial dos homens brancos”
A equipe que participou do projeto é majoritariamente negra e feminina, correto? Isso foi proposital? Ser majoritariamente negra definitivamente é proposital. Não havia outra forma de fazer o Projeto Querino que não fosse assim e eu acho que é por isso que ele é tão bem sucedido. É óbvio que eu quero que o projeto chegue ao máximo possível de pessoas, e isso inclui pessoas brancas, porque eu acredito que a responsabilidade por acabar com o racismo no Brasil é principalmente delas. Mas o público que eu mais queria que ouvisse o projeto e que lesse o livro são definitivamente as pessoas negras, e eu acho que a gente alcança isso justamente pelo fato de ter muitas pessoas negras participando do projeto.
E quanto a parte feminina da equipe? Eu tenho uma preocupação em incluir mulheres em todos os meus trabalhos de áudio. Faço isso porque é uma tendência no jornalismo como um todo que os principais entrevistados sejam só homens brancos do sudeste. Então na maior parte dos meus podcast, a maioria dos entrevistados e a maioria dos personagens são mulheres. Trabalhar com a Rádio Novelo e com a Fósforo, cujas equipes são majoritariamente femininas, também ajudou.
E qual foi a parte mais divertida de trabalhar nesse projeto? O trabalho é algo que me move muito. É um processo que carrega muitas dores, mas que também é muito divertido. Pensando em episódios específicos, o momento mais divertido eu acho que foi fazer o trecho de polirritmia do episódio de música, que é um trecho em que eu demonstro sonoramente o que é isso. Ao longo dos últimos anos eu fiz muitos episódios de podcast, mas eu nunca me senti explorando tanto as possibilidades que o áudio dá quanto nesse episódio. Também tiveram vários outros momentos divertidos, como o churrasco que dei pra toda a equipe quando o podcast completou um milhão de downloads.
Historicamente, quando esse debate começa a ser feito, também surge uma demanda por reparação. Como o projeto Querino se insere nesse contexto? Eu acho que o Projeto Querino se insere, humildemente, como mais uma iniciativa dentre muitas outras que contribuem para o debate sobre reparação. Uma das formas de fazer isso é por meio da informação, seja historiográfica, seja por meio de dados, como o jornalismo faz. Se não houver reparação, não vai haver equidade de fato. Informação é essencial, mas existem outras formas igualmente importantes, como a financeira. Por isso as políticas de ação afirmativa são tão significativas.
Seu projeto envolve muito jornalismo e muita história e, desde muito tempo, existe um certo conflito entre esses grupos. Como vocês lidaram com isso no projeto Querino? Eu estou ciente dessa treta, mas felizmente no Projeto Querino eu não a enfrentei. Primeiro, porque uma das áreas do jornalismo envolve conversar com a história, mas com uma linguagem mais direta, não muito presa a conceitos acadêmicos. Isso só pode ser feito porque tem historiadores fazendo essa investigação com mais estofo e mais amplitude. Acho que não enfrentamos essa dificuldade porque eu tenho um respeito muito grande e ajo de forma quase temerosa, deixando claro que sou jornalista e não quero invadir a seara de ninguém. Além disso, o projeto não foi desenvolvido apenas por jornalistas. Nós temos historiadores na equipe – inclusive, a pessoa que deu o norte teórico, ideológico e intelectual do projeto é uma historiadora, a Inaê Lopes dos Santos. Fico muito feliz quando recebo elogios de historiadores, porque sei que eles percebem que tenho muito respeito pela profissão deles.
Não pude deixar de notar que, na adaptação do podcast para o livro, vocês removeram uma menção que faziam ao Silvio Almeida. Isso foi proposital? Essa foi uma decisão proposital e foi tomada no dia em que eu, como jornalista, estava cobrindo o caso. Achei que manter aquela passagem no livro, que estava prestes a ser publicado, atrairia uma polêmica que não nos compete. A decisão foi por aguardar o devido processo legal. A história vai ser apurada e, numa futura reedição, caso as acusações se mostrem inverídicas, não haverá problema nenhum em incluir o trecho novamente. Além disso, tirar esse trecho não traria ônus nenhum ao livro porque era uma fala que apenas reiterava algo que já havia sido dito de outras formas.
O livro se propõe a contar a história de pessoas negras, mas não apenas do ponto de vista da dor e do sofrimento. Qual a importância disso? Acho que isso é um resultado também do fato de o projeto ter sido feito por uma maioria negra. Muitas produções feitas por pessoas brancas tocam bastante na dor e promovem uma espécie de pornô de violência – eu não inventei esse termo, mas ouvi em algum lugar e achei apropriado. Isso tem ocorrido cada vez menos, mas ainda existe. Para a gente, o Querino não podia ser só sobre dor, porque é um projeto sobre autoestima, sobre referencias e sobre mostrar negros que também são cientistas, escritores, advogados, jornalistas, enfim…não apenas pessoas negras com ensino superior, mas pessoas negras que estão celebrando a vida e resistindo.
O livro também fala sobre luta. Você acredita que algum dia essa batalha vai chegar ao fim? Ela vai ser contínua até resolver; ela vai ser contínua até que se tenha equidade. É uma luta que continua até que pessoas negras estejam ocupando 55% dos cargos de chefia e até que as mulheres negras não sejam mais as principais vítimas de violência. Eu não sei se a gente vai ver isso na nossa geração. O livro Números da discriminação racial (Ed. Jandaíra) mostra que, no ritmo que estamos, nós ainda levaremos mais de uma década para alcançar equidade trabalhista ou na educação, por exemplo. Como pessoa e como jornalista, não acredito que vou conseguir parar de lutar até eu morrer, mas eu gostaria muito que isso acontecesse.
“Todas as pessoas que não fazem parte do grupo identitário dominante têm mais chances se estiverem unidas”
O senhor sempre comenta muito sobre luta compartilhada. Hoje isso está satisfatório? Eu acho que entre pessoas negras e pessoas indígenas essa luta compartilhada está firme e sólida. Se nós olhamos para a proteção ao meio ambiente e para as questões climáticas, por exemplo, os povos indígenas e quilombolas têm liderado. Além disso, um bom exemplo é a luta por políticas afirmativas, que também beneficia pessoas com deficiência, pessoas indígenas e brancos pobres, algo que é muito importante. Agora, isso sempre pode melhorar. Quando falamos em luta compartilhada, pensamos em negros e indígenas, mas também precisamos pensar em outros grupos minorizados como judeus e pessoas LGBT. Todas as pessoas que não fazem parte do grupo identitário dominante têm mais chances se estiverem unidas.
No lançamento do livro, a Taís Araújo comentou sobre o lobby que ela faz para que o Querino se transforme em um projeto audiovisual. Essa é uma possibilidade? Esperança sempre dá para ter, não podemos dizer nunca, mas não é algo que está no horizonte a curto prazo. Talvez algum dia, se fizer sentido e eu estiver convencido de que o projeto vai chegar a mais pessoas, mantendo tudo que é basilar, com forças que sejam comprometidas com os direitos humanos e com o antirracismo. Pessoalmente, meu foco principal agora é fazer a divulgação do livro, pensar no projeto educacional, que vem aí ano que vem, e focar cada vez mais no meu trabalho, que é o jornalismo. O que eu gosto de fazer mesmo é ser repórter e eu vou seguir sendo repórter.