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‘Remexi o trauma’, diz sobrevivente que foi consultor de série sobre a Candelária

José Luiz dos Santos, 46, conta que reviveu a chacina no Rio como parte da produção da bem-sucedida obra da Netflix

Por Paula Freitas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 jan 2025, 08h00

Nasci e cresci nas ruas do Rio de Janeiro até os 5 anos, junto com minha mãe, que, sem condições, me abandonou no Juizado de Menores. Era muito novo e nem me lembro do seu rosto, mas, procurando aqui e ali, descobri ao menos seu nome e que também tenho uma irmã, de quem nunca me aproximei. Não sinto esse elo. Fui pulando de orfanato em orfanato, submetido a violências diversas por parte daqueles que deveriam me proteger. Rodei mais de dez instituições. Não comia direito e fui vítima de agressão sexual e tortura física e psicológica. Um dia, ainda nos anos 1980, fecharam o orfanato em que eu morava e passei a viver nas escadarias da Igreja da Candelária, com outros meninos, no Centro carioca — palco da chacina que chocou o país. Só consegui escapar por obra do acaso. Estava com fome e havia ido procurar o que comer quando a polícia saiu atirando, do nada. Uma tragédia que completou três décadas e que nunca imaginei revisitar.

Mas o mundo girou, e cutuquei esse capítulo tão traumático agora, num papel completamente diferente: fui consultor da série Os Quatro da Candelária (Netflix). Não queria que a história se apagasse. Naquela época, não tive direito de ser menino. Para sobreviver, revirava lixo, cometia pequenos delitos e passava óleo no corpo para escapar dos policiais, o que me rendeu o apelido de Escorrego. O cotidiano nas ruas é incerto, desesperador. Em um momento, vi uma mulher morrer ao meu lado. Passei mais de um ano sem conseguir falar. Quando já dormia na área da Candelária, havia uma escalada do crime na região, e um monte de “pivetes” como nós chamava a atenção da polícia. Na véspera da chacina, ocorreu um confronto direto. A garotada lançou pedras contra uma viatura, e os PMs prometeram vingança. E cumpriram. Abriram fogo contra dezenas de pessoas que estavam nas bandas da igreja naquele triste 23 de julho de 1993. Oito morreram, seis menores de idade, todos conhecidos.

Estava longe no exato momento da chacina. Tinha ido pedir um cachorro-quente a uma moça que sempre nos ajudava. Meus amigos não quiseram ir, aí fui sozinho. Logo ouvi o barulho e vi carros da polícia acelerados, em direção à igreja. O combinado era fugir sempre que avistávamos a frota. Então entrei no trem, mas logo fui abordado por agentes de segurança que sabiam que eu pertencia ao grupo dos “pivetes”. Eles me torturaram a caminho da delegacia, já na viatura. “Se abrir a boca, vamos te matar”, ameaçavam. Mesmo com muito medo, contei tudo em depoimento e, cientes dos riscos que eu corria naquelas circunstâncias, me colocaram num avião, como parte do Programa de Proteção a Testemunhas. Por três anos, morei no exterior, entre Holanda, Suíça e França. Mas, sem autoestima, não há lugar no mundo que faça a gente se sentir bem, mesmo em segurança.

Minha vida só passou a fazer sentido quando voltei ao Brasil, aos 18 anos. Optei por seguir a vida em uma instituição filantrópica e arranjei emprego. Voltei a estudar e fiz cursos técnicos. Conheci minha esposa e aprendi a gostar de mim. Entre um bico e outro, virei motorista da Globo e me aproximei de alguns atores. Um dia, me ofereceram uma vaga na produção e adorei. Conheci o cineasta Luis Lomenha ainda na juventude, e ele tentou me convencer a fazer um filme sobre a chacina. Não queria. Era duro remexer tantos traumas. Mas os anos se passaram e, enfim, aceitei. As gravações foram difíceis. Mantive na cabeça que aquilo havia ficado para trás. Era passado. Na estreia de Os Quatro da Candelária, chorava ao me ver representado na tela. O ator Andrei Marques chegou a me pedir desculpas por me fazer reviver tanto sofrimento. Eu lhe agradeci. A violência policial resiste, e sinto que ali, na tela, transmitimos o recado. A série ocupou o ranking de mais assistida no Brasil e no mundo e espero que tenha contribuído para que essa bárbara história não se repita.

José Luiz dos Santos em depoimento a Paula Freitas

Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925

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