Quem sabe mais tarde: congelamento de óvulos avança no Brasil
Muitas mulheres se veem hoje envoltas em dúvidas sobre a maternidade. E aí entra em cena um recurso que lhes tira o peso do relógio biológico
Não faz muito tempo que o enredo da vida seguia mais ou menos o mesmo percurso: estudar, se formar, casar e ter filhos, que costumavam vir em velocidade-relâmpago. Aí prevalecia aquela divisão de tarefas segundo a qual os homens se encarregavam do sustento da prole enquanto a mulher submergia em meio à atribulada rotina doméstica. A humanidade felizmente caminhou, e as bandeiras feministas agitadas nos anos de 1960, somadas ao advento da pílula anticoncepcional, sacudiram os antigos pilares e descortinaram novas trilhas para elas. Conforme o tempo passou, as ambições foram drasticamente mudando — ter uma boa carreira, comprar uma casa sozinha, viajar o mundo —, e ser mãe deixou de ser um destino inexorável. É neste planeta de múltiplas escolhas que a ala feminina ganhou na ciência uma aliada e tanto: ela abriu a possibilidade de congelar os óvulos, o que retira dos ombros delas a inclemente pressão do relógio biológico, dando-lhes a chance de adiar a decisão sobre a maternidade.
A novidade nesse campo é que um contingente cada vez maior de mulheres procura clínicas atrás de tal recurso, que vem se expandindo de forma extraordinária no Brasil. Segundo um recente levantamento da Anvisa, o número de mulheres que passou por ciclos de congelamento de óvulos (eis o termo técnico) cresceu 76% no país apenas entre 2020 e 2023. O aumento deu-se, sobretudo, entre pessoas com menos de 35 anos, faixa em que o avanço cravou 98%. Isso chama a atenção para o fato de, ainda muito cedo, elas já estarem com a cabeça feita para engravidar mais tarde. “Como nunca, as mulheres estão se precavendo e pensando no longo prazo”, constata o médico Isaac Moise, responsável pela clínica Primordia, no Rio de Janeiro, que observou a busca pelo congelamento de óvulos disparar nos últimos anos. Ele e outros especialistas enfatizam que recorrer à técnica na faixa dos 30 costuma ser mais eficaz, já que os óvulos são mais abundantes e de melhor qualidade. “Com o passar dos anos, eles ficam menos saudáveis”, explica.
A ciência concebeu o congelamento de óvulos nos anos 1980 embalada por um estímulo específico: a ideia era criar uma alternativa a pacientes com doenças que pudessem comprometer a fertilidade, como certos tipos de câncer. Foi só por volta de 2010 que o método começou a ser utilizado, sem qualquer recomendação médica, por mulheres que simplesmente queriam ampliar seu rol de escolhas. Uma expressiva parcela delas sabidamente está agora adiando a maternidade. Segundo a Pesquisa de Estatísticas do Registro Civil, recém-divulgada pelo IBGE, houve aumento de 56% no grupo de mães com idades de 30 a 39 anos, e um salto de 110% entre aquelas com mais de 40, tudo no exíguo período de 2000 a 2022, o último dado disponível. Em direção oposta, caiu 42% a taxa de mulheres que engravidam antes dos 20. Envolta nos desafios da carreira, a influenciadora digital Ana Carolyna Bonilha, 34 anos, não se imagina hoje tendo um bebê e aderiu ao congelamento de óvulos, dando voz a um pensamento muito comum em sua faixa etária. “Para mim, é uma forma de autonomia, de não ter de decidir nada já. Por ora, o foco é no trabalho”, esclarece.
Celebridades vêm dando visibilidade ao assunto — atrizes como Paolla Oliveira, Fernanda Paes Leme, Mariana Ximenes e Dani Calabresa já revelaram ter passado pela coleta de óvulos, todas no patamar dos 40 anos. Já Nanda Costa, 37, e Ivete Sangalo, 52, são ambas mães de gêmeas, de 2 e 6 anos, respectivamente, geradas por meio do método, justamente uma opção que encontraram para não ficar presas ao relógio biológico. Em fevereiro, a atriz Carla Diaz, 33 anos, que por agora não pretende ser mãe, compartilhou nas redes sua experiência. “É um dos meus desejos. Não sei quando e como será, mas, para realizá-lo um dia, fiz o processo de congelamento de óvulos”, contou.
A técnica não é barata — gira em torno dos 20 000 reais — e não raro traz efeitos colaterais. Depois de uma batelada de exames, a paciente é submetida a doses hormonais em comprimido ou injetáveis, com o objetivo de estimular a produção de folículos nos ovários. Tais medicamentos podem desencadear inchaço, sangramentos, náuseas e dores. Apenas de dez a doze dias após a menstruação a mulher se submete à coleta, feita por meio de aspiração e sob anestesia geral. “É preciso entender que, mesmo com tudo isso, não há garantia de gestação no futuro”, alerta Álvaro Pigatto Ceschin, presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA). Mas as chances são elevadas: até os 30, giram em torno de 65%.
O Brasil ecoa um fenômeno percebido mundo afora, uma vez que o sacolejo nas aspirações femininas se faz universal. No Reino Unido, a Autoridade de Fertilização Humana reportou um aumento de 60% no congelamento de óvulos em dois anos, enquanto nos Estados Unidos o avanço foi de 39% no período. Além de todas as transformações de natureza sociológica que fizeram o globo girar, a pandemia também deu impulso à procura pela técnica. Muita gente nessa duríssima fase desistiu de engravidar e resolveu, por via das dúvidas, recorrer ao congelamento. “Foi um momento de grandes incertezas. Elas tinham medo de que, no meio da crise sanitária, o bebê nascesse com alguma malformação e se preocupavam com o futuro como nunca antes”, relata Fernando Prado, à frente da NeoVita, uma clínica especializada de São Paulo.
Muitas mulheres sentem profundas dúvidas sobre a maternidade e é aí que a ciência entra em campo, para deixar uma porta aberta, mas sem aquele peso do passado. “Fiz o processo em abril deste ano. Tive cólicas, fiquei inchada e houve mudanças de humor, mas valeu a pena”, diz a empresária Patrícia Villela, 34 anos, que começou a refletir sobre o tema depois de ouvir amigas que, mais velhas, estavam enfrentando dificuldades para engravidar. “Nunca tive o sonho de ser mãe, mas quero estar preparada caso a vontade bata”, afirma ela, que se imagina também sem crianças em volta. “As mulheres descobriram que têm inúmeras possibilidades em suas trajetórias. A maternidade é só uma delas”, reforça a socióloga Eva Alterman Blay, professora emérita da USP. É excelente a ciência estar em cena para lhes dar o tempo necessário para a tomada de decisão tão delicada.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896