Quem foi Heitor dos Prazeres, o multiartista que completaria 125 anos
Conheça a trajetória do nome que uniu música, pintura e tradições em uma expressão única da identidade nacional

Poucas pessoas sintetizam a alma do brasileiro de forma tão rica quanto Heitor dos Prazeres, que completaria hoje 125 anos de nascimento. Nascido em 23 de setembro de 1898, quando a abolição da escravatura chegava a sua primeira década, Heitor foi compositor, músico e pintor, fora do universo das artes também foi sapateiro, alfaiate, jornaleiro e marceneiro. Tendo a sorte de ter vindo ao mundo no berço do nascente samba carioca, tornou-se fã dos prazeres da vida, que trazia no nome e que fez questão de retratar em todas as suas manifestações artísticas.
Vindo de uma família onde a música era parte essencial do cotidiano, começou, ainda garoto, a frequentar as tradicionais rodas de samba da Tia Ciata, onde se encontravam vários bambas, como Lalu de Ouro, tio que lhe deu o primeiro cavaquinho, João da Baiana, Cartola, Sinhô, Donga, Pixinguinha e muitos outros sambistas daquela época. Com Noel Rosa compôs “Pierrot Apaixonado”, uma das marchinhas de carnaval mais conhecidas do Brasil. Sua paixão pela festa o ligou diretamente ao nascimento de diversas escolas de samba, entre as quais estão a Mangueira e a Portela.

“Sua vida, seu talento, sua multiplicidade de meios de atuação cultural e, sobretudo, sua extraordinária capacidade de vencer as adversidades da vida, transformando-as em arte, fez de Heitor um grande artista, um pioneiro da modernidade negra brasileira”, diz Margareth Telles, fundadora da MT Projetos de Arte e idealizadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome” que esteve em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro.
Em 1927, protagonizou com Sinhô, conhecido por ter gravado o primeiro samba da história, a primeira grande polêmica da música popular brasileira. Na festa de Nossa Senhora da Penha, no subúrbio do Rio, costumava-se lançar músicas que seriam cantadas no carnaval, e foi justamente nela que Heitor ouviu a música “Cassino Maxixe” ser atribuída exclusivamente a Sinhô. Percebendo que sua participação na composição havia sido ocultada, Prazeres teria ido tirar satisfações com o colega de boemia, que teria lhe respondido com uma frase que se tornou célebre no mundo das rodas de pandeiro: “Samba é como passarinho, a gente pega no ar”. Começou aí um duelo musical entre os dois, com uma série de sambas provocativos.

Nos anos 1930, quando tocava no Cassino da Urca, casa de jogos de prestígio internacional, dividia o palco com Grande Otelo e Josephine Baker, que o apresentou ao cineasta Orson Welles, vencedor do Oscar pelo aclamado filme “Cidadão Kane”, que contratou o músico como arregimentador de figurantes para um filme sobre samba e carnaval. “Heitor tratou, em sua arte, de assuntos ainda muito atuais”, afirma Telles. “Ele foi um visionário, uma espécie de herói brasileiro”.
“Se há um homem que não precisava ser pintor era esse, cuja vida e amores já contava de maneira tão boa em outra arte, mas sua imensa riqueza interna veio ganhar, na pintura, uma expressão do samba”, escreveu Rubem Braga, em 1953, quando, aos quase 40 anos, Heitor se familiarizou com os pincéis. Seus temas favoritos eram as festas, a boemia, o candomblé, a roça, o samba e, claro, o carnaval, que pintou com traços fortes e cores contrastantes.

“Ele abordou o direito dos homens e mulheres negros ao lazer, ao trabalho, à moradia e registrou a dignidade do cotidiano das famílias negras dos subúrbios e das primeiras favelas do Rio de Janeiro”, acrescenta Telles. “Teve sensibilidade para compreender a importância das mulheres, seja na preservação dos saberes ancestrais ou no sustento, muitas vezes sozinhas, da família nas classes populares”. Heitor teve uma carreira profícua entre os pincéis, seus quadros ganharam prêmios e marcaram presença em prestigiosos museus e exposições nacionais e internacionais. Em 1943, a então princesa Elizabeth II viu a pintura “Festa de São João” em uma exposição beneficente em Londres e, encantada, a adquiriu contribuindo com a fama do pintor no exterior.