Protesto estampado: o barulho por trás da camiseta Protect the Dolls
Ela viraliza ao sair em defesa da comunidade trans — e vira o mais novo exemplo de como uma peça pode vestir uma poderosa bandeira

Na era digital, protestar ao modo analógico tem um quê de revolucionário — embora, é quase inescapável, tudo seja imaginado para ecoar na ágora das redes sociais. Recentemente, um fenômeno explodiu nas passarelas e se disseminou pelos tapetes vermelhos, ostentado pelos corpos de gente famosa e vastamente reverberado dentro e fora do ambiente virtual. Idealizada pelo designer americano Conner Ives, a camiseta com a inscrição Protect the Dolls (Proteja as bonecas) virou um manifesto cravado em tecido em prol de pessoas trans e, de tão vestida mundo afora, tornou-se um marco no extenso histórico de protestos que vêm fazendo da roupa uma bandeira política.
Foi na Semana de Moda de Londres, em fevereiro, que a iniciativa de Conner Ives começou a ganhar envergadura, quando o próprio estilista apareceu usando uma camiseta com a inscrição, ao final de seu desfile de outono-inverno. A simplicidade da peça branca, adornada com a frase em letras garrafais, contrastava com a força da mensagem. “Bonecas”, na cultura queer, é termo carinhoso para se referir a mulheres trans, cujas raízes se fincam no caldo de cultura dos anos 1980. A ideia surgiu para protestar contra medidas como a de Donald Trump, nos Estados Unidos, que arbitrou por decreto só haver os gêneros masculino e feminino. Pouco tempo depois disso, a Suprema Corte do Reino Unido definiu legalmente “mulher” com base apenas no sexo biológico, excluindo assim as mulheres transgênero.

Como é típico do ciclo dos modismos, as celebridades logo adentraram a cena, impulsionando a popularidade da camiseta-bandeira da vez. No rol dos que exibiram a peça em eventos públicos e nas redes, destacaram-se, pelo entusiasmo, Tilda Swinton, Addison Rae e Pedro Pascal, que não perdeu a oportunidade de desfilar com ela na estreia do filme Thunderbolts, em Londres, dias após a decisão da Suprema Corte britânica. O ator chileno, cuja irmã, Lux Pascal, é uma mulher trans, engrossou o coro da comunidade contra a autora J.K. Rowling, autora de Harry Potter, que aplaudiu a decisão da Justiça. Pascal então disparou: “Perdedora!”.
Na história, as camisetas só começaram a envergar mensagens a partir de meados do século XX, quando a tecnologia propiciou o avanço da serigrafia, mudança que abriu caminho para que os gráficos se consolidassem, transformando essas peças em verdadeiras telas. Logo, surgiram os protestos, dos mais variados gêneros. Nos anos 2010, o conceito ganhou novos contornos quando a estilista Maria Grazia Chiuri emprestou o título do livro We Should All Be Feminists (Sejamos todos feministas), da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, para criar uma camiseta da Dior, até hoje uma das mais vendidas da maison francesa.

Também no Brasil, a moda vem sendo empregada em contextos diversos como ferramenta de expressão do pensamento. Em 2020, era comum esbarrar nas redes com famosas como Angélica, Mariana Ximenes e Cris Vianna trajando blusas com emocionantes frases proferidas por Mirtes Renata, a mãe do menino Miguel, que morreu ao ser deixado sozinho pela patroa dela, no Recife — um drama que repercutiu nacionalmente. No caso de Protect the Dolls, ainda que pesem opiniões distintas sobre a aplicação do termo “boneca”, o movimento conseguiu unir amplo espectro de pessoas em torno de uma mensagem central de solidariedade. “É mais um gesto em prol da necessidade de alertar o mundo sobre os horrores que vêm sendo praticados contra nossa comunidade”, afirma a deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que se reconhece como mulher trans e teve o gênero alterado para masculino no visto emitido pelo consulado americano.
Em momentos de efervescência política e social, a moda se faz naturalmente mais ativa no papel de ventilar ideias de forma simples e fácil de digerir. Desde as blusas com dizeres antinucleares até os manifestos feministas estampados, a história demonstra como uma peça de roupa pode se converter em potente veículo para a defesa de direitos e a junção de pessoas em torno de uma bandeira. “Mais do que camisetas, são uma forma de passar uma mensagem e gerar união”, resume Valentina Sampaio, primeira modelo trans a desfilar para a Victoria’s Secret, a propósito do fenômeno Protect the Dolls. A tirar pelas trepidações do mundo de hoje, é de esperar que muitas outras camisetas apareçam para dizer a que vieram. É uma moda que veio para ficar.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942