Por que o hábito da nudez pública na Europa começa a cair em desuso
O medo do julgamento das redes é uma das causas
A Europa vivia um acelerado processo de industrialização no fim do século XIX, e tudo o que as pessoas queriam era se livrar dos ares sombrios de uma sociedade que passava a se mover por engrenagens mais sisudas. Daí surgiu a filosofia naturalista, que pregava em sua essência uma conexão direta com a natureza, o que incluía arrancar peças de roupa e expor a nudez, sem sexualização nem barreiras, num exercício radical da liberdade. Mais tarde, quando a cortina de ferro cindiu o mundo na paisagem que emergiu da Segunda Guerra, frequentar locais públicos com módicos pedaços de tecido — ou mesmo nenhum — se tornou ato de protesto, tendo a Alemanha Oriental, ligada ao naco comunista, como palco-maior. E assim o globo deu voltas, sedimentando no continente europeu a naturalização dos corpos nus. Refestelar-se ao sol com quase tudo à mostra em cidades como Berlim, Amsterdã e Londres consolidou-se como hábito, ganhando impulso junto à conquista de um leque variado de direitos individuais.
Só que esse pilar que parecia até agora inabalável começa a tremular, com uma turma crescente optando por cobrir-se por inteiro, sobretudo os mais jovens, embalados que estão pelos padrões de beleza tão disseminados pelas redes. E a cultura do corpo livre, ou FKK (a sigla em alemão), anda caindo em desuso justamente em praias, gramados, campings, saunas e clubes que a projetaram com vigor e leveza nestas décadas — uma saída de cena insuflada também pela onda conservadora que se alastra.
Dados da DFK, maior associação de naturismo da Alemanha, onde é instituição altamente respeitada, mostram como a prática do nudismo míngua ano a ano. A começar pelo número de sócios da DFK, que caiu quase à metade neste século. Outro sintoma dos novos e mais pudicos ventos se revelou recentemente, quando a associação teve que cancelar eventos de celebração de seu 75º aniversário. A razão: falta de participantes. Uma tristeza para os adeptos do conceito, fincado na bandeira mais ampla de uma vida com menos amarras. “A ascensão do culto do corpo perfeito em redes como TikTok e Instagram vem elevando a pressão para as pessoas não se despirem”, analisa, pesaroso, Alfred Sigloch, presidente da DFK.
Pode soar contraditório, mas quem encabeça o movimento de esconder o corpo é a onipresente geração Z, a turma que vem povoando o planeta entre 1996 e 2010. É essa fatia de mente aberta, tão afeita à diversidade e à liberdade de escolha, que mais tem debandado do naturismo, ainda bastante cultivado pela banda mais velha na Europa. Na França, mulheres com mais de 65 anos são três vezes mais propensas a praticar o topless, conhecido naquelas areias como monokini, do que meninas entre 18 e 24 anos. “Sempre tive vergonha. Pensar nisso me deixa muito desconfortável”, disse a VEJA a parisiense Théa Salabert, de 18. Segundo levantamento do Instituto Francês de Opinião Pública, na década de 1980, 43% da ala feminina bronzeava os seios à vontade, índice que recuou para os atuais 16%. “Nossa sociedade está menos tolerante do que no passado”, reconhece a francesa Patricia, ex-entusiasta do topless, que preferiu não dar o sobrenome. Entre os motivos mais citados para elas agora se revestirem de pano, aparecem o desconforto com olhares masculinos e o medo constante do julgamento alheio — dois itens que, noutras eras, não eram uma questão.
Bombardeados na internet por imagens de silhuetas impecáveis (posadas e editadas), até os mais libertários dos jovens pensam duas, três vezes antes de exibir o corpo. “As mídias sociais fizeram as pessoas mais conscientes sobre como são vistas pelos outros”, explicou a VEJA Maren Möhring, historiadora cultural da Universidade de Leipzig, na Alemanha. “Um segundo fator moderno é o medo que paira sobre elas de acabarem sendo expostas pelas lentes de curiosos”, lembra Maren. Uma pena, já que os benefícios de tratar a nudez de forma mais natural são palpáveis. De acordo com uma pesquisa britânica da Universidade Goldsmiths, os naturistas são mais autoconfiantes e satisfeitos com o próprio corpo. “Afastar esse tabu é um caminho para uma autoimagem mais positiva”, observou a VEJA o psicólogo social Keon West, coordenador do estudo.
No Brasil, o tema sempre repousou no escaninho dos assuntos impronunciáveis. Não que o nudismo não tenha sido (nem seja) praticado — com especial ascensão nas décadas de 1950 e 1960 —, mas a forte influência do catolicismo, que na ditadura militar se somou à censura, sempre foi um freio de mão. Até hoje, é um papo envolto em estigmas, recluso às estreitas faixas de areia brasileira onde se libera o nudismo. “A relação dos brasileiros com a nudez é ambígua. Se por um lado impera a superexposição nas praias, ainda há repressão para quem pratica topless”, enfatiza o especialista Carlos Heraldo, professor da Universidade Estadual de Maringá. Tanto do lado de cá dos trópicos como em solo europeu, falta um mergulho mais fundo no que está por trás dos panos — um perigoso temor de não se encaixar nos implacáveis padrões vigentes e voltar às sombras do passado.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920