O segredo das boas taxas de felicidade nos países durante a pandemia
Levantamento mostra que a chave para permanecer de bem com a vida é apostar na empatia e na benevolência em momentos de crise
A felicidade é o ideal mais cobiçado pelo ser humano. Ela inspira a humanidade no campo artístico, é fonte de reflexões e impulsiona transformações individuais e coletivas. Ao filósofo Tales de Mileto é atribuída a definição mais antiga. Na concepção do grego, era feliz quem tinha o “corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Mais de 2 000 séculos depois, Tom Jobim cantou o sentimento como algo que “voa tão leve mas tem a vida breve”, ao sintetizar a forma como o conceito passaria a ser encarado, com ceticismo. Em um mundo tão sombrio, seria difícil desfrutar sensações tão boas por muito tempo. Ou, nas palavras irônicas de John Lennon, “a felicidade é uma arma quente”.
É verdade. Mas o Relatório Mundial da Felicidade, que acaba de ser divulgado, traz uma bela surpresa. Diante das adversidades, a felicidade pode realmente ser fugaz. Mas é possível reinventá-la, alimentá-la com outras fontes até que reapareça devolvendo aos indivíduos a satisfação com a vida apesar da dor. Realizado pelo instituto Gallup World Poll, o estudo é um dos termômetros mais bem calibrados do bem-estar geral das nações. A versão de 2022 mede o humor da civilização em um momento único: os dois anos de pandemia. Os dados foram colhidos entre 2019, naquele mundo como o conhecíamos, e os dois primeiros anos da atual tragédia sanitária. Era esperado que, de maneira geral, os índices despencassem. No entanto, não foi o que aconteceu. Descobriu-se que a responsável por sustentar boas taxas de felicidade mesmo em temporada amarga foi uma mistura de exercício de empatia com benevolência. Ajudar o outro, comprovou o documento, é sentir-se bem.
Há algum tempo as pesquisas na área demonstram que a solidariedade está na base de uma vida mais gratificante. “Pessoas mais engajadas socialmente e que encontram um propósito na vida demonstram maior felicidade”, diz a neurocientista Elisa Kozasa, do Instituto de Ensino e Pesquisa da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein, de São Paulo. O que o levantamento deixa agora claro é o tamanho da prática de benemerência na promoção do bem-estar. Entre 2020 e 2021, houve um salto de 25% nas atividades de voluntariado, de auxílio a estrangeiros e de doações em relação ao período pré-pandêmico. Essas ações atenuaram parte do sofrimento entre quatro paredes e fora delas com o coronavírus. “A onda de benevolência gerada na pandemia fornece evidências poderosas de que as pessoas respondem muito bem quando é preciso auxiliar outros seres humanos”, explica o professor John Helliwell, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, autor de um dos capítulos do relatório. “Além disso, a corrente gera felicidade aos beneficiários, bons exemplos para quem está do lado e uma vida melhor aos que trabalham pelos próximos.”
O relatório apresenta o ranking de felicidade entre as 146 nações pesquisadas. A Finlândia ocupa a primeira posição pelo quinto ano consecutivo, seguida por Dinamarca, Islândia, Suíça e Holanda. O Brasil aparece na 38ª posição, uma queda de 9 pontos em relação ao levantamento anterior, com dados de 2017 a 2019. A informação não surpreende. O país enfrenta um dos piores momentos de sua história recente, com evidente aumento de miséria nas ruas, sinônimo da desigualdade social e atalho para a tristeza. Lá no chão da lista estão nações mergulhadas em conflitos sem solução à vista, invariavelmente em permanente guerra civil, como o Afeganistão, o último colocado. “A nota dada pelos afegãos à qualidade de vida foi de apenas 2,4, em uma escala que vai a 10”, lamenta Jan-Emmanuel De Neve, diretor do Centro de Pesquisa de Bem-Estar da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e um dos autores do levantamento.
Na conta da felicidade realizada pelo instituto, entram fatores subjetivos e outros bastante concretos. A pesquisa é feita durante três anos. Em cada período, são colhidas autoavaliações que cada entrevistado faz da qualidade de sua vida em uma escala que vai de zero a 10, sendo essa última gradação a que exprime “a melhor possível”. Na outra esfera, são contabilizadas seis variáveis perfeitamente mensuráveis: PIB per capita, apoio social, expectativa de vida saudável, liberdade, generosidade e corrupção.
Os marcadores ajudam a entender os motivos que levam os países nórdicos a ter destaque no ranking. Finlândia, Dinamarca e Islândia são conhecidas por oferecer a seus habitantes uma sólida estrutura de apoio social e econômico, a possibilidade do pleno exercício dos direitos individuais e instituições eficazes e respeitáveis. Tudo isso foi posto à prova durante a pandemia e os resultados mostraram-se extremamente satisfatórios. A educação, a segurança, o tempo para o lazer e a chance de viver em cidades limpas e organizadas também contribuem para que os cidadãos demonstrem elevados níveis de confiança pessoal e nas instituições.
A relevância de documentos como o produzido pelo Gallup World Poll ultrapassa a mera curiosidade. Na última década, índices que aferem os níveis de prazer com a vida passaram a ser considerados na formulação de políticas públicas, selando o afortunado casamento entre as ciências da felicidade e da economia. Constatou-se que quando o patamar de bem-estar entra na planilha de planejamento, as iniciativas têm maior chance de resultar em ganhos efetivos de qualidade de vida para a população. E cidadãos mais satisfeitos produzem melhor, adoecem menos e contribuem para que a rotina do país se mantenha em ordem. O Butão, o Reino Unido e a Nova Zelândia utilizam essas métricas. Os dados são aplicados para preparar, priorizar e monitorar projetos governamentais.
A Nova Zelândia, por exemplo, emprega a denominação “Orçamento de bem-estar” há três anos e registrou estatísticas de satisfação com a vida em seu levantamento sobre Orçamento no ano passado. O país comandado pela primeira-ministra Jacinda Ardern é tradicionalmente conhecido pelos bons serviços públicos e foi exaltado mais de uma vez por sua conduta na pandemia. O Butão, por sua vez, serviu de inspiração para a criação do relatório do Gallup depois de começar a medir a felicidade interna bruta.
O índice nasceu nos anos 1970, quando Jigme Singye Wangchuck, rei do país asiático localizado entre a China e a Índia, pôs à mesa uma ideia: o nível de riqueza de uma nação não deveria ser mensurado apenas por produtos ou consumo, como manda a tradição, mas também pelo conforto mental de seu povo. Desde então, entraram no cálculo do Butão fatores como espiritualidade e acesso à cultura. Entender que a felicidade tem valor para além do próprio sentido existencial, do hedonismo, é uma grande evolução. Ele costuma ser percebido justamente nos momentos mais agudos, como uma pandemia ou uma guerra. Não por acaso, e não apenas como consolo, o governo do primeiro-ministro britânico Winston Churchill promoveu bailes em parques londrinos durante a II Guerra Mundial. O Reino Unido venceu, nas armas e na diplomacia, mas também porque soube rir dentro do possível. Ainda que, já informou o poeta brasileiro, tristeza não tenha fim, felicidade sim.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782