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Pesquisa exclusiva: como problemas mostrados em ‘Adolescência’ angustiam famílias brasileiras

Novo levantamento revela relatos de ciberbullying e de dificuldades para controlar o que os jovens fazem na internet

Por Ricardo Ferraz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Duda Monteiro de Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 abr 2025, 03h28 - Publicado em 4 abr 2025, 06h00

Em uma das cenas mais tocantes de Adolescência, a série da Netflix da qual é difícil parar de falar, um casal comum do interior da Inglaterra entabula um dramático diálogo a respeito do filho de 13 anos, submergido no sombrio universo que o levou a um extremo imprevisível: Jamie está preso sob a acusação de matar uma colega de classe. “Ele não saía do quarto. Chegava, batia a porta e ia direto para o computador. Nunca dizia nada”, lembra a mãe, dando os contornos da distância que separava o rebento do mundo no entorno, neste caso com trágico desfecho. “A gente também fez ele”, resigna-se ela, destroçada pela angústia de não ter conseguido se infiltrar no impermeável cotidiano virtual do jovem, que sofria bullying, de modo a ampará-lo.

A obra, o maior fenômeno de audiência da plataforma de streaming, já registra 97 milhões de visualizações em 71 países. O sucesso decorre da competência em cutucar de forma dramática um tema universal, que hoje mobiliza famílias às voltas com uma jovem geração que passa horas sugada pelos labirintos da internet, dissimulada atrás de uma barreira difícil de transpor. “Se tivemos um objetivo, foi o de tentar iniciar uma conversa entre pais e filhos”, disse Stephen Graham, ator e criador da série, que vive o patriarca dilacerado pela dor.

arte adolescentes

Os problemas abordados na produção também angustiam as famílias brasileiras, com relatos de muitos casos de cyberbullying e dificuldades para controlar o tempo e o que os jovens fazem nas redes. Isso fica evidente no levantamento que VEJA encomendou à MindMiners, empresa especializada em pesquisas on-line. Foram entrevistados 1 000 pais e mães de meninos e meninas entre 10 e 18 anos. O retrato que emerge daí mostra quanto a atividade virtual, a partir da impressão dos adultos, é de longe a mais buscada pela garotada: 48% a põem no topo das preferências ante os 6% que escolhem encontrar amigos à moda antiga, olho no olho. Cerca de um terço da amostra considera que os filhos passam tempo excessivo isolados em seu hábitat e se revela insegura em relação a interações seladas entre um clique e outro, mesma porção que diz saber que o jovem já foi alvo de bullying, dado espantoso (leia no quadro).

É verdade que uma parcela considerável (58%) afirma estar ciente do que se desenrola na caixa-preta daquele quarto trancado, mas esse dado não bate com a experiência de especialistas no assunto. Profissionais de áreas como pedagogia e psicologia que lidam com a delicada teia familiar em fase de tantas incertezas sabem que, muitas vezes, os pais não têm noção do que está realmente acontecendo, em processo de autoengano. A própria pesquisa conduz à esta conclusão. “Eles parecem otimistas demais, acreditando que os filhos estão protegidos, quando podem estar expondo apenas parte do que fazem nas redes”, diz Danielle Almeida, sócia da MindMiners.

CAIXA-PRETA - No isolamento do quarto: especialistas recomendam romper o silêncio e dialogar
CAIXA-PRETA – No isolamento do quarto: especialistas recomendam romper o silêncio e dialogar (Javier Zayaz/Getty Images)
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Sob o ângulo geracional, o diálogo entre pais e filhos é hoje mais assíduo e sincero do que no passado, quando assuntos espinhosos repousavam no escaninho dos temas impronunciáveis. Mas antes não havia o mundo paralelo da internet, com suas perigosas armadilhas e idioma próprio, cheio de códigos e símbolos que soam como grego para os adultos. É, aliás, essa a ideia que move a engrenagem dos emojis (conheça os mais usados no quadro). “Adolescentes criam um vocabulário próprio como forma de se identificar e de dificultar a compreensão de quem está de fora”, afirma o especialista Silvio Sato, da USP.

E dá-lhe vocábulos como incel (celibatários involuntários), red pill (referência ao movimento misógino) e beta (homem submisso), todos imbuídos da ideia de que a mulher é o algoz, vastamente divulgada nas redes por gente crescida que se destaca como influencer, disseminando aberrações no TikTok e no Instagram. Conteúdo tão distorcido presta o desserviço de martelar na cabeça de uma juventude em plena formação um discurso envolto em ódio e um festival de preconceitos, como aconteceu com o filho mais velho da contadora de histórias Isabel Reis, de São Paulo. “Ele passava horas dentro do quarto, rindo de piadas que rebaixavam minorias”, diz ela, que agiu em duas frentes: proibiu o garoto de manter perfis nas redes e, depois, levou-o à terapia.

MALDADES SEM FIM - A carioca Adriana Quintairos, 55 anos, lutou como pôde quando soube que a filha, M., de 13, sofria cyberbullying. Foi à escola, ao Conselho Tutelar e falou com outros pais. De nada adiantou, e a garota tentou tirar a própria vida. “Morro de medo de ela fazer uma nova besteira”, desabafa.
MALDADES SEM FIM – A carioca Adriana Quintairos, 55 anos, lutou como pôde quando soube que a filha, M., de 13, sofria cyberbullying. Foi à escola, ao Conselho Tutelar e falou com outros pais. De nada adiantou, e a garota tentou tirar a própria vida. “Morro de medo de ela fazer uma nova besteira”, desabafa. (./Arquivo pessoal)

A normalização de pensamentos contaminados por intolerância funciona como uma espécie de cola social, firmando laços entre alguns e deixando outros de fora. É o caso de Jamie, o garoto de Adolescência. É uma ciranda perversa que existe desde sempre, mas que ganha nova roupagem nestes tempos em que as redes ampliam quase tudo. No início do ano, o Santa Cruz, tradicional colégio de São Paulo, suspendeu 34 jovens e expulsou quatro depois que veio à tona um caso de bullying que tinha como palco a ágora do WhatsApp. Naquele ambiente, alunos do terceiro ano do ensino médio obrigavam colegas do primeiro a realizar tarefas humilhantes e a gravar vídeos com mensagens misóginas. Os abusos já eram conhecidos, mas um pacto silencioso, pavimentado pelo medo, encobria a prática. Um dia, a história apareceu, e a escola agiu com rapidez, determinando, além da suspensão, a participação dos envolvidos em encontros para refletir sobre a postura. “O episódio reforçou o compromisso de discutir relações de gênero, preconceitos e a masculinidade com todos os estudantes”, diz Marina Nunes, diretora do ensino médio (leia entrevista). “O clima melhorou, mas tenho dúvidas se a mentalidade realmente mudou”, diz um aluno que, por óbvias razões, mantém o anonimato.

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O cyberbullying, que não cessa quando o adolescente cruza os portões escolares, pode ter consequências nefastas, deixando a pessoa sem chão justamente quando começa a demarcar território. Em geral, quem é alvo de maus-tratos virtuais se fecha e vive uma angústia solitária. A especialista em marketing Adriana Quintairos, 55 anos, que mora no Rio, não tinha ideia do calvário enfrentado pela filha M., de 13, no Instagram. “Você já ficou com todos os professores”, “sua mãe não gosta de você”, “por que não se mata?” — tudo isso circulou ali. Adriana só tomou conhecimento da situação quando já era irrefreável. De nada adiantaram as conversas no colégio particular do Rio onde ela estudava — perdido como tantos outros em meio à complexidade trazida pela internet — nem a denúncia que fez ao Conselho Tutelar. Tampouco surtiu efeito um papo franco com os pais de uma das meninas que atacava sua filha. “Achavam que era brincadeira de criança”, diz. Um dia, desesperada, M. tomou uma cartela inteira de remédios para dar fim ao tormento, felizmente sem efeitos graves. Ela terminou o ano letivo em casa, com professor particular, passou a tomar antidepressivos e engatou na terapia. “Dizia que se sentia um lixo, que não queria viver. Ainda morro de medo de minha filha fazer outra besteira”, relata a mãe, que a trocou de escola.

PRESA FÁCIL - Mãe de três filhos, Isabel Reis, 39 anos, se assustou quando o mais velho, de 16, passou a defender ideias misóginas difundidas nas redes. “Ele estava indo pelo mesmo caminho do protagonista de Adolescência”, diz ela, que fez o menino apagar os perfis e o levou à terapia.
PRESA FÁCIL – Mãe de três filhos, Isabel Reis, 39 anos, se assustou quando o mais velho, de 16, passou a defender ideias misóginas difundidas nas redes. “Ele estava indo pelo mesmo caminho do protagonista de Adolescência”, diz ela, que fez o menino apagar os perfis e o levou à terapia. (./Arquivo pessoal)

As feridas abertas na adolescência, alertam especialistas, podem custar a cicatrizar. “Sentir-se inferior nessa fase é algo que impacta a vida para sempre”, disse a VEJA a psicóloga Lucy Foulkes, da Universidade de Oxford, na Inglaterra (leia trechos da entrevista). A explicação para a extensão dos danos reside na ciência. Além da enxurrada de hormônios e das modificações visíveis no corpo, a puberdade leva a uma profunda transformação cerebral. E os estímulos do ambiente, nessa idade, se tornam mais decisivos, sobretudo para a ativação do córtex frontal, região responsável pelo pensamento abstrato, pela memória e pela personalidade. Um entrave nessa engrenagem que desemboca no amadurecimento, lá pelos 20 e poucos anos, tem sido o contínuo uso de telas, que alimenta outra porção do cérebro, embalada a respostas rápidas. “Na prática, isso atrasa o desenvolvimento de áreas que inibem comportamentos inadequados”, afirma o neuropediatra Mauro Muszkat, da Unifesp.

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O universo digital ajuda a exacerbar características já inerentes a esse intenso período da existência. Sabidamente, os jovens buscam se afastar dos pais, procurando apoio entre amigos, e ficam propensos a burlar regras. “Meninos e meninas vão tateando até onde podem ir e encontram no ambiente on-­line um espaço onde muita coisa é permitida, sem consequências”, observa a psicóloga Ana Laura Schliemann, da PUC-SP. Educadores concordam que a proibição do uso de smartphones nas escolas, em vigor desde o início do ano letivo em todo o país, freou um pouco alguns problemas decorrentes das interações nas redes, mas isso nem de perto equacionou uma questão de camadas tão fundas. A série Adolescência serviu para trazer o tema aos holofotes e às rodas de debate, estimulando pais a levar as aflições aos colégios. Além de conversas sobre o uso do celular e das redes, já usuais, as escolas Parque, no Rio, e da Vila, em São Paulo, preparam nova programação no cenário pós-série. “Vamos capacitar os educadores sobre os temas levantados ali e levar a discussão às famílias”, diz a diretora pedagógica Sonia Barreira, do grupo Bioma, responsável pelas duas instituições.

Dramas como o exibido nos quatro episódios da série inglesa, um caso extremo dado o caldo de violência em que está imerso, acendem um alerta sobre quão vital para os pais é romper a inércia e adentrar o quarto dos filhos, encampando a difícil missão de ir diminuindo o perigoso fosso que separa os dois mundos. Há medidas bem práticas, como a adoção dos chamados aplicativos de vigilância parental, que permitem monitorar as idas e vindas do adolescente na internet, e o estabelecimento de regras claras para uso de aparelhos eletrônicos (leia o quadro).

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Mas aí está só o começo. Para guindar o adolescente da galáxia paralela, recomenda-se oferecer atividades off-­line atraentes e encarar tópicos que costumam ser empurrados para debaixo do tapete, mas não deveriam. “Pornografia, círculos de amizade, bullying, se você não falar com seus filhos sobre isso, a internet vai falar por você”, diz a advogada Alessandra Borelli, autora do livro Crianças e Adolescentes no Mundo Digital.

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O duelo é travado ainda com os algoritmos, que oferecem à turma jovem conteúdo inadequado em profusão. Entidades atentas aos riscos embutidos aí defendem que as plataformas sejam obrigadas a reduzir a frequência de envio de reels e criem atalhos para denúncia de material inapropriado, além de oferecer curadoria humana sobre o que é ventilado nas redes. As big techs resistem, alegando cerceamento à liberdade, naturalmente incomodadas com um conjunto de medidas que faz elevar custos e compromete a monetização. Em março, contudo, em boa iniciativa, a Meta, dona do Instagram, resolveu agir e passou a impor restrições para usuários com menos de 18 anos, oferecendo ferramentas para o controle dos pais e aprimorando o sistema de verificação de idade.

REAÇÃO - Aula no Santa Cruz: alunos expulsos por prática de cyberbullying
REAÇÃO - Aula no Santa Cruz: alunos expulsos por prática de cyberbullying (./Divulgação)

São passos na direção certa, porém insuficientes diante da envergadura do desafio. “A verdade é que não há transparência nem mecanismos para garantir que as plataformas não forneçam conteúdo indesejado aos jovens”, diz Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet. A Austrália não esperou que as empresas se adequassem e, de forma pioneira, proibiu o acesso às redes para menores de 16 anos. Que os ecos da série Adolescência sigam reverberando e chamando a atenção para questões sobre as quais definitivamente precisamos falar, sem medo nem tabu.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

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