O sonho virou pesadelo: os impactos do movimento sem controle de visitantes em Bali
Fenômeno provoca transtornos no dia a dia da população e causa severo impacto ambiental na charmosa ilha da Indonésia

Há lugares no mundo embebidos de fama indelével, construída pelo tempo, pelos comentários boca a boca e, mais recentemente, pelas fotos distribuídas pelo Instagram. Um desses cantos é Bali, na Indonésia, cujo nome descarta qualquer tipo de apresentação, mas vá lá: com cerca de 4 milhões de habitantes, a ilha concentra a maior população de hindus do país, reconhecida pelas túnicas coloridas e pelos rituais diários que a fazem transbordar de espiritualidade. As praias paradisíacas, e fica aqui o pedido de perdão pelo chavão, abrigam mais de 500 espécies de corais. Cenário do sucesso cinematográfico Comer, Rezar, Amar, de 2010, o lugar ganhou definitivo relevo como destino turístico internacional. Contudo, o que era sinônimo de sonho hedonista tem virado pesadelo. Bali vive, agora mais do que nunca, uma praga que assola o planeta: o chamado overturismo.
No ano passado, foram 6,3 milhões de visitantes — patamar que ultrapassa 2019, logo antes da eclosão da pandemia de covid-19 (veja o quadro). Em 2025 será daí para mais, e o resultado pode ser traduzido numa única palavra: caos. Não se trata apenas da lotação, dos enxames que povoam o que era vazio, das filas e da dificuldade de andar daqui para lá. A confusão de agora, que tende a se multiplicar, é resultado de longo descaso com planejamento, período em que apenas os dólares e euros tinham importância. Em áreas procuradas, como Kuta, Seminyak, Canggu e Ubud, a proliferação de beach clubs e hotéis de luxo transformou vilarejos tranquilos e silenciosos em centros barulhentos e movimentados, prejudicando o ritmo de vida e a identidade cultural local. Como resolver? Bastaria o estabelecimento de regras e limites, como já ocorre em cidades europeias.

Há evidente inversão: constrói-se primeiro a estrutura para os visitantes, como hotéis e piscinas, e só depois tenta-se adaptar vias e serviços, como abastecimento de água. A velocidade da expansão ultrapassou a capacidade dos serviços, impondo pressão insustentável sobre recursos públicos, transporte e segurança. Regiões projetadas para plantação de arroz, como Canggu, foram sobrecarregadas com infraestrutura urbana, resultando em problemas de tráfego e congestionamento. E pior: a perda dos terraços de arroz, que absorvem a água da chuva, contribuiu para o aumento das inundações.
A má gestão de resíduos e a poluição plástica agravaram a situação, ameaçando os ecossistemas marinhos. A Indonésia é o segundo maior emissor mundial de resíduos de polipropileno, perdendo apenas para a China, despejando anualmente cerca de 620 000 toneladas de plástico no oceano. Há também falta de controle eficiente de resíduos e de campanhas de conscientização. Atualmente, surfistas buscam praias menos cheias e mais limpas, preferindo o lado norte da ilha, mais preservado. “Às vezes, em alto-mar, eu me deparo com uma corrente de lixo passando”, diz o empresário e surfista Alexandre Rolim Basile Rosi, de 53 anos, que frequenta o local desde a década de 1990. Além do lixo, o consumo excessivo de recursos naturais é nó dramático. Mais da metade da água subterrânea de Bali é direcionada para a indústria do turismo, usada em banhos, piscinas e lavanderias. O superconsumo ameaça o tradicional Subak, um antigo e louvável sistema cooperativo de distribuição de água.
Há respostas emergenciais. Discute-se a proibição de novos hotéis, restaurantes e casas noturnas. Jeanine Pires, ex-presidente da Embratur, observa que os destinos de sol e praia são massificados há anos, a ponto de serem destruídos. “Nem todo lugar tem essa capacidade de carga e força política para impor limites aos investimentos predatórios”, diz Pires. “O caminho é o turismo regenerativo.” Em outras palavras: é preciso alimentar atividades que devolvam benefícios para as comunidades. Um deles, aplaudido internacionalmente, é o Projeto Stop, implementado no condado de Jembrana (conhecido pelas praias mais preservadas), que estabeleceu coleta de lixo e instalações de triagem e reciclagem. Mas, ao passar para as mãos do governo, encontrou problemas de financiamento e sobrecarga da engrenagem.
Bali pede ajuda, grita por socorro antes que seja tarde demais. O paraíso ferido talvez precise dar um passo atrás, tendo em mente uma das frases inspiracionais de Comer, Rezar, Amar, o bonito livro de Elizabeth Gilbert que inspirou o filme: “Há momentos em que temos de procurar o tipo de cura e paz que só pode vir da solidão”.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966