O projeto premiado que leva assistência médica a áreas carentes
Startup que começou trabalhando em cidades no percurso do Rally dos Sertões lança mão de tecnologias de ponta nos atendimentos
Foi numa tarde chuvosa de 2013 que surgiu a ideia de fazer a diferença na vida de quem mora em áridas terras brasileiras. A médica Adriana Mallet e a educadora física Sabine Bolonhini tinham acabado de assistir em uma sala de cinema na Avenida Paulista, em São Paulo, ao documentário Quem Se Importa, de Mara Mourão, que conta a história de projetos idealizados por empreendedores sociais em sete países. Ficaram tocadas. “Não dava para desver aquilo”, diz Sabine. Algumas noites depois, a vocação de “impactar o mundo” germinou regada a uma paixão do casal: viajar com um jipe 4×4. Compraram um Pajero usado e foram atrás do Rally dos Sertões, o principal evento do gênero na América Latina e o segundo do planeta. Pegaram mais uns carros emprestados, arrumaram uma tenda de campanha e lançaram uma vaquinha on-line para montar uma expedição e levar assistência médica, ao lado de outros seis voluntários, a cidades carentes no percurso da prova. Nascia, assim, a startup batizada de Saúde e Alegria nos Sertões (SAS Brasil).
Dez anos depois, a iniciativa tem recursos tecnológicos próprios, ultrapassa fronteiras geográficas, aparece na lista das principais socialtechs e ostenta prêmios tanto pela inovação médica como pela relevância social — o mais notável deles, o reconhecimento no mais recente Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Nesta semana, Adriana, Sabine e sua trupe voltam a botar a mão na massa e a gastar solas e pneus na 31ª edição do Rally dos Sertões, que parte de Petrolina (PE) e se encerra na Praia do Preá (CE), perfazendo 3 800 quilômetros. No trajeto, cidades e necessidades foram mapeadas para prestar atendimento a 10 000 pessoas, missão a ser cumprida com carretas e consultórios itinerantes, telemedicina, doações de grandes empresas e o trabalho de 75 voluntários. “Nossa ideia é ajudar o SUS a lidar com um de seus maiores gargalos, a falta de acesso à assistência especializada à saúde”, diz Adriana.
Na primeira década de vida da SAS, os profissionais atuaram na identificação de problemas de visão — muitos deles sanados com óculos —, check-up e tratamento odontológico e detecção e encaminhamento para resolver casos de câncer de pele e de colo de útero, desafios de saúde pública no Brasil. Mais do que boa vontade, a operação funciona à base de tecnologia. Há softwares de gestão e atuação próprios, que começam a ser comercializados para reverter a renda às causas sociais. Conectam-se, também, agentes da atenção básica a especialistas em grandes centros aptos a ajudar no diagnóstico e na orientação adequada aos pacientes. O recurso decolou com a pandemia, quando a startup instalou cabines de teleconsulta em favelas do Rio de Janeiro. Um exemplo notório de como a tecnologia está no DNA da SAS é o uso de telemedicina para rastrear casos suspeitos de câncer de colo de útero, a quarta principal causa de morte de mulheres no Brasil. “Por meio de exames como o papanicolau com análise remota, é possível flagrar e tratar mais cedo as lesões, aumentando a acurácia do atendimento e as chances de cura”, afirma Adriana, cujo trabalho foi também seu mestrado pela Unicamp.
Atualmente, o critério para inclusão de municípios no radar da SAS é ter um índice de desenvolvimento humano baixo (IDH menor que 0,7) e até 30 000 habitantes. Mas as fundadoras miram a expansão de horizontes. Para isso, novas ferramentas, como a inteligência artificial, já são recrutadas a fim de aprimorar o uso de métodos diagnósticos utilizados a distância. Uma das fórmulas é cuidar do negócio, fazê-lo crescer, mas sem descuidar da proposta original. A startup exercita, assim, o extraordinário papel de ponte entre as esferas pública e privada, transpondo benefícios a regiões e cidadãos menos privilegiados economicamente. Adriana e Sabine esperam montar 480 unidades de telessaúde junto ao SUS e bater 1 milhão de atendimentos diretos nos próximos quatro anos.
Outro ponto fundamental, que não escapa da acuidade da dupla, é a sustentabilidade ambiental. Cientes de que as grandes companhias têm o desafio de mitigar suas emissões de carbono, a proposta do projeto CompenSAS é um sistema inteligente de crédito em que as viagens de avião de executivos, por exemplo, são convertidas em transporte coletivo para levar a postos de consulta quem não pode pagar por isso Brasil adentro. São modelos passíveis de exportação, celebrados pela nata de Davos, mas também por pessoas que nem sonhavam em ter assistência médica especializada. Dos sertões para o mundo, o bonito e fascinante trabalho da SAS acaba de virar, ele mesmo, tema de um documentário. É inspiração para as próximas gerações de empreendedores sociais.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854