O direito de dizer não: laqueadura dispara entre as jovens no Brasil
Em meio a uma série de avanços no terreno da contracepção, o país flexibiliza o acesso ao mais radical dos métodos
Por muito tempo, o ciclo da vida de uma mulher não era visto como pleno se não conduzisse à maternidade. Esta ideia vem sendo aos poucos dissolvida, para alívio, sobretudo, das integrantes das novas gerações. Seja porque a carreira absorve demais as energias, seja por não querer arcar com a complexidade e o alto custo envolvidos, seja por descrença em um futuro melhor diante da polarização e da ameaça climática, o fato é que cada vez mais elas optam por não ter herdeiros — algumas ficam arrepiadas só de pensar. Ventos que começaram a soprar nos anos de 1960, quando bandeiras feministas tremulavam com vigor, acabaram por lhes abrir horizontes que representam um avanço inequívoco no campo das escolhas individuais. É justamente neste caldo de mais liberdade que foi divulgada pelo Ministério da Saúde uma daquelas estatísticas que ajudam a delinear uma virada de página: o contingente de brasileiras que decide logo na largada da etapa adulta não ter bebês vem se expandindo em ritmo acelerado.
Os números que agitaram os meios especializados, contidos em um relatório, mostram que, no último ano, a procura por laqueaduras — o mais radical dos métodos anticoncepcionais, por esterilizar a pessoa de forma permanente ao amarrar, cortar ou obstruir as trompas, com baixa chance de reversão — subiu 80%, alcançando quase 100 000 procedimentos em clínicas privadas e na rede pública Brasil afora. Uma flexibilização nas regras foi o empurrão decisivo. Para se submeter a uma laqueadura, era preciso cumprir uma lista de pré-requisitos, entre os quais ter mais de 25 anos, pelo menos dois filhos e aprovação do cônjuge. Até que, em março de 2023, entrou em vigor uma lei que fez a idade mínima cair para 21 anos e retirou a cláusula da chancela do parceiro. Natural que a busca tenha aumentado, puxada pelos jovens, o que dá a dimensão de quão sólido é o desejo de não ter filhos para uma fatia das mulheres. “A maternidade está deixando de ser idealizada por uma ala que cultiva outros sonhos”, avalia Flaviana Amorim, que passou anos dedicada ao amparo psicológico antes da intervenção. “Apesar de a maioria saber o que quer, é bom fazê-las refletir sobre uma decisão tão definitiva”, pondera.
A demografia fornece uma fartura de dados que reforçam como o furor reprodutivo de décadas passadas está cedendo lugar a um planeta no qual uma porção crescente de países já quebra a cabeça para manter as engrenagens da economia se movendo com menos braços. Tendência em boa parte do mundo, o freio à natalidade é nítido no Brasil, onde levantamento do IBGE aponta que, em 2022, a natalidade caiu pela quarta vez seguida e a população começará a encolher em menos de vinte anos. O que muito pesou para isso foi o acesso maciço a métodos anticoncepcionais, que garantiram o direito de escolha sobre a maternidade. Agora, a flexibilização das normas para as laqueaduras se soma ao rol. “É um progresso. Havia muitas clínicas clandestinas de laqueadura no país”, lembra a psicanalista Margareth Anilha, do Núcleo de Estudos de População da Unicamp. Assim que a nova lei passou a valer, a carioca Bárbara Pinto, 25, entrou na fila para o procedimento, que envolve anestesia local e internação de um dia. “Adoro crianças, mas não quero essa responsabilidade para mim”, explica ela, que, como outras de sua faixa etária, cogita a via da adoção caso bata a vontade de ser mãe mais tarde.
O relatório do Ministério da Saúde também aponta para uma reviravolta histórica em matéria de contracepção: o envolvimento cada vez maior dos homens no processo. Chama atenção ali o crescimento das vasectomias, que também foram contempladas pela nova lei, aumentando 40% em um ano. “A responsabilidade de se proteger de uma gravidez sempre caiu no colo da mulher. Era ela que tomava pílula, seguia tabelinha, enquanto ele resistia até ao uso da camisinha. Pela primeira vez, os homens estão tendo consciência do seu papel no planejamento familiar”, observa a psicóloga Flaviana Amorim. Aos 23 anos, o paulista Joas Vieira decidiu redobrar os cuidados e, mesmo com a namorada tomando anticoncepcional, optou pela vasectomia. “Não é simples colocar um filho no mundo do jeito que está. Tenho muitos planos e uma criança os atrasaria”, diz.
Apesar do relevante passo dado no terreno legal, pacientes ainda relatam situações de constrangimento ao ir ao posto de saúde atrás de um procedimento de esterilização. Precisam esperar no mínimo dois meses, o chamado “tempo de arrependimento”. Nesse intervalo, em teoria, ficam sob acompanhamento multidisciplinar, com o objetivo de receber orientação. Na prática, muitas enfrentam alta pressão para voltar atrás e até ouvem recusas que contrariam a legislação. Muita gente que toma a decisão de recorrer à trilha mais radical acaba silenciando sobre o tema, para evitar julgamentos, como a paulista M.R., 24 anos, que encarou obstáculos até a laqueadura. “A médica disse que não faria a cirurgia por me achar muito nova. Tive que levar o caso a instâncias superiores para conseguir o encaminhamento”, conta, relatando que enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais tentaram desestimulá-la.
Apresentar a uma turma tão jovem o que está embutido nessa escolha de caráter definitivo é esperado e desejável. “São cirurgias difíceis de reverter, por isso, deve ser uma decisão tomada com toda a reflexão e cautela”, afirma a médica Mariane de Novais, especialista em reprodução humana da USP. No caso das vasectomias, a metade dos arrependidos tem sucesso na reversão, mas, com as laqueaduras, as chances são mais minguadas — apenas 30% conseguem voltar atrás, e só quando as trompas não foram cortadas. “Não é papel do médico escolher pelo paciente, mas aconselhar e dar opções”, ressalta a ginecologista Mariane de Novais. No fim das contas, cada um é responsável pelas decisões sobre o próprio corpo, e a preservação dessa ideia fundamental representa um avanço a ser celebrado.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908