O avesso do avesso: os estragos provocados pela disseminação de bobagens na era dos influencers
Ao revisitar seu primeiro livro, O Ponto da Virada, o escritor Malcolm Gladwell entrega conclusões pessimistas ou genuinamente realistas

Foi quase na pré-história, em um tempo sem redes sociais — ali onde hoje tudo acontece, o joio e o trigo. No ano 2000, depois de descobrirmos que o mundo não tinha acabado em um bug de computador, o jornalista britânico Malcolm Gladwell, que então escrevia na revista americana The New Yorker, lançou um clássico imediato — e bastante otimista a respeito do futuro. Em O Ponto da Virada ele mostrou como pequenas ações ou mudanças sutis podem desencadear imensas (e boas) transformações sociais, culturais e comportamentais. Elas se espalham como vírus, gerando uma série de revoluções. É o momento em que uma novidade se torna dominante, como tendência — e tudo muda de vez.
Um exemplo, do bem, extraído do livro que vendeu mais de 5 milhões de exemplares e fez de Gladwell um popstar da inteligência: a crise de criminalidade na Nova York dos anos 1980, que começou a ser debelada com detalhes como a limpeza dos vagões do metrô. Embelezados, eles ajudaram a puxar uma locomotiva de respeito, porque os vândalos já não tinham coragem de emporcalhar o que parecia bem-cuidado. Naquele tempo, o autor dividiu as pessoas com capacidade de espraiar ideias positivas em três grupos: os “conectores”, de vastas conexões com as pessoas ao seu redor; os “especialistas”, de profundo conhecimento; e os “vendedores”, persuasivos.

Vinte e cinco anos depois daquela aventura intelectual, Gladwell revisita a tese original em O Outro Lado do Ponto da Virada (Editora Sextante) para entregar conclusões pessimistas ou genuinamente realistas: agora, aqueles mesmos mecanismos de disseminação em sociedade — multiplicados pela ágora da internet — podem ser usados essencialmente para o mal, como na manipulação de narrativas, no império das fake news, atalho para o que ele batizou de “epidemias sociais negativas”. Um exemplo, ou dois: a crise dos opioides nos Estados Unidos, dada a facilidade de prescrições de analgésicos, que se espalharam pela internet; e a pandemia de covid-19, banhada de falsas informações distribuídas por pessoas ou instituições com poder desproporcional de influência, os “superdisseminadores”.
Não há aí nenhuma grande originalidade, algo inédito que já não se tenha dito, mas é bonita a capacidade de um escritor de beber de seu próprio trabalho, ainda mais um trabalho consagrado, para sugerir correções, porque a civilização andou rápido em demasia. Não por acaso, na capa de O Ponto da Virada há um fósforo, elegante na sua simplicidade, ainda intacto. Em O Outro Lado do Ponto da Virada, ele está em combustão. “Ao revisar o material, percebi que o mundo mudou tanto que era necessário escrever um livro totalmente novo”, disse a VEJA Gladwell. Cotejar os dois volumes é um susto que impõe uma indagação: como chegamos até aqui? Não há resposta única, mas é crucial saber que a polarização acelerada pela tecnologia produziu danos. É, na definição do autor, uma “engenharia social”, que inexistia há um quarto de século.

Passear pelas páginas de Gladwell é atalho para entender o que temos intuído, mas pedia organização: o vale-tudo das redes sociais, mas também da TV (leia abaixo trechos da entrevista com Gladwell) é gatilho para movimentações da sociedade alheias à verdade. Não pode ser assim. O ponto de virada que devemos buscar, de uma vez por todas, é o respeito à democracia, sem ferir a liberdade de expressão. Sempre é tempo.
“O movimento antivacina é uma crença assustadora”
Intelectual pop, o britânico Malcolm Gladwell, de 61, conversou com VEJA. A seguir, os principais trechos.

Em seu novo livro, o senhor mostra evidente preocupação com as “epidemias sociais”, como a dos opioides, nos Estados Unidos, e a de covid-19, acelerada pelo negacionismo. Onde podem brotar novas epidemias desse tipo? Tenho feito um podcast em torno do movimento antivacina e fico impressionado com o quão forte ele é. Tem perdurado mesmo diante de evidências esmagadoras da eficácia das vacinas. Convém lembrar que ele nasceu antes da covid-19 e se manteve apesar dela. É uma crença assustadora. Estão mais fortes do que nunca. É preocupante.
É possível atribuir a velocidade de expansão desses movimentos à força das redes sociais? Talvez sim, mas é preciso ainda medir cientificamente seu real impacto. Convém lembrar que a TV também teve muito poder, quando foi lançada e durante muitos anos. A mídia de massa sempre teve efeito poderoso e multiplicador.
Que críticas faria a seu trabalho de 2000, O Ponto da Virada? Diria que os argumentos e soluções prescritas por essa obra eram muito universais. Hoje tenho muito mais respeito pela variação, pelo específico de cada cultura, de cada país. Não se pode mais generalizar, apesar da globalização.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944