Novos estudos mostram o poder de pequenos atos de bondade na rotina
Eles alavancam o bem-estar dos envolvidos e, em espiral favorável, melhoram o metabolismo das pessoas
Nestes tempos em que a palavra crise tornou-se frequentadora assídua dos noticiários e discussões — seja para expressar as mudanças climáticas, seja para se referir às guerras em curso —, tamanho não é documento quando se vislumbram soluções. Pequenos gestos de gentileza no dia a dia podem desencadear um positivo efeito dominó na sociedade a partir de suas repercussões no estado físico e emocional de cada indivíduo tocado por eles. Não se trata de ter fé ou não na humanidade — é palavra da ciência. Uma novíssima safra de estudos revela que, ao melhorarem a saúde e o senso de pertencimento das pessoas, demonstrações de atenção e bondade promovem uma espécie de espiral favorável a algumas das causas mais nobres e desafiadoras da nossa era.
Nos últimos anos, o conceito de gentileza, assim como os de compaixão e solidariedade, transcendeu o campo ético e moral e se estabeleceu como um pilar na psicologia e na medicina. Experimentos apontam que ações simples e rotineiras, como um cumprimento no elevador ou um agradecimento na padaria, reverberam no organismo e podem gerar impactos cumulativos para o cidadão e a comunidade em seu entorno. Esses momentos de conexão casual ajudam a refrear o estresse, reduzir o sentimento de solidão e fortalecer os laços sociais. Em uma das pesquisas mais marcantes na área, interações mínimas, como breves diálogos com baristas, chegaram a promover maior sensação de bem-estar — algo que hoje pode ser medido com exames de sangue e de imagem cerebral. “Quando olhamos as pessoas como seres humanos, e não como parte de um grupo ou estereótipo, criamos mais oportunidades de nos conectar com elas”, diz a psicóloga Ilana Pinsky, autora do livro Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Editora Contexto). Com pequenos gestos — do “bom dia” ao “obrigado” a um estranho —, as supostas diferenças se esvaem, alimentando a empatia.
Afora os impactos sociais, praticar (ou ser tratado com) gentileza e compaixão realmente faz bem à saúde. O tema é investigado por diversos grupos científicos pelo mundo, um deles no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Em uma experiência, voluntários devidamente monitorados foram expostos a áudios que evocavam mensagens carinhosas. Resultado: menores níveis de hormônios do estresse e maior variabilidade cardíaca, um índice que mostra quão bem o corpo responde às tensões da vida. Outra análise, baseada na avaliação dos dados de ao menos 100 000 pessoas na Inglaterra, constatou que o convívio com os outros, por meio de amizades duradouras ou conversas casuais, foi o principal fator de proteção contra a depressão, superando uma centena de variáveis esmiuçadas.
Os relacionamentos são tão relevantes no cotidiano que já existem profissionais de saúde receitando a socialização aos pacientes como se fosse um remédio. A prática, batizada de social prescribing, tem sido fortemente recomendada e integrada a programas estruturados em países como o Reino Unido, a Finlândia e o Canadá. No Brasil, por ora há projetos pontuais, como encontros de meditação, terapias comunitárias e oficinas de artesanato em algumas unidades básicas de saúde.
Lição amarga, o isolamento imposto pela covid-19 comprovou, em massa, quanto fazem falta o contato social e a troca de cortesia. Por outro lado, instigou a força da solidariedade e da responsabilidade frente a uma doença contagiosa. “Naquele momento, enfrentávamos todos a mesma ameaça, o que nos obrigava a olhar mais para o outro e a considerar como nossas ações impactavam a vida de todos”, afirma Pinsky.
Mas não é preciso tocar o dia a dia sob a sombra de uma catástrofe para transbordar gentileza. Pelo contrário. E há inspirações dignas de reconhecimento. Caso emblemático é o da queniana Wangari Maathai (1940-2011): exemplo de que quem semeia pequenas ações pode colher mudanças significativas no mundo. Em 1977, ela iniciou o movimento Cinturão Verde com o simples gesto de plantar árvores para combater a degradação ambiental em sua terra natal. A iniciativa cresceu a ponto de virar um programa de grande escala a promover as causas da sustentabilidade, da inclusão social e do empoderamento feminino em todo o continente africano. Por seu poder transformador, Wangari se tornou a primeira mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2004. Sua história reforça que, embora a gentileza até pareça instintiva, pode ser cultivada como hábito e se multiplicar. É algo que começa em casa, na educação das crianças, se espalha pelas ruas e no ambiente de trabalho e desata, sempre, um círculo virtuoso. E, diante das inúmeras crises à vista, ninguém em sã consciência deve abrir mão dela.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923