Não é o amor romântico: pesquisa mostra a chave para casamento feliz
Eles se sentem mais contentes, segundo estudo da Universidade de Chicago, pelo forte vínculo de amizade que travam com seus cônjuges
Em um passado distante, subir ao altar era um ato sem relação com laços afetivos. A decisão de selar uniões tinha muito mais a ver com conquista de aliados, articulação de costuras diplomáticas e avanço do poderio econômico das famílias. Eis que nos tempos medievais, lá pelo século XII, brotou a ideia do amor romântico, conceito que tinha nos trovadores, sobretudo os franceses, uma potente fonte de divulgação. Em O Poder do Mito, o pensador americano Joseph Campbell sustenta que é a partir daí que a paixão passa a ser força motriz dos casamentos, instituição que sobreviveu a eras diversas, mas não sem sentir os abalos da modernidade. Com a emancipação feminina, elas se sentiram mais livres para dissolver a parceria firmada no papel, elevando o número de divórcios e sedimentando a noção de que a vida a dois faz sentido quando fincada sobre bases verdadeiras. Uma parcela da humanidade continua se separando, mas o que mais chama atenção nos efêmeros dias de hoje é o aumento no número de casórios mundo afora, inclusive no Brasil.
Uma questão que intriga a ala de especialistas voltada para o tema é quão feliz anda essa turma que troca alianças. Uma vasta pesquisa, recém-conduzida pela Universidade de Chicago, examinou o amplo banco de dados do General Social Survey, que mede há décadas o bem-estar dos americanos, ouvindo gente de todas as idades e sexos, solteiros e casados. O minucioso mergulho aponta para uma interessante conclusão: numa escala cientificamente elaborada, os que estão em uma união estável se revelam 30 pontos percentuais mais satisfeitos com a vida do que os que seguem sem par. “Os dados não deixam dúvidas de que o matrimônio é um ponto que pesa a favor”, ressaltou o economista Sam Peltzman, à frente da aferição. “Não significa que para alguém estar bem precise usar uma aliança, mas a existência a dois tem se demonstrado um caminho para a felicidade”, pondera Marta Souza, da Sociedade Brasileira de Psicologia.
Um dos motores dessa sensação de bem-estar captada pelos pesquisadores de Chicago talvez decepcionasse os trovadores do século XII. Pois não é o enlace romântico que explica o fato de os casados se dizerem mais contentes — eles se sentem assim pelo forte vínculo de amizade que travam com seus cônjuges. Cultivar amigos, em geral, é uma trilha bem-sucedida para alcançar alegrias, algo que um levantamento da Universidade Harvard, o mais extenso já produzido na área, pontuou com todas as letras ao afirmar: a plenitude é equivalente à qualidade das amizades firmadas ao longo da jornada.
No casamento, sustentam os estudiosos, elas seriam ainda mais sólidas, dada sua constância e profundidade. “Tenho com meu marido uma amizade diferente, embalada por um projeto conjunto, enquanto os amigos em geral seguem suas rotinas de forma muito mais independente, como é esperado”, avalia a estudante de enfermagem Gabriela Chacon, 30 anos, casada há menos de dois com Daniel, 29. Sim, ainda é pouca estrada. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Família, nos Estados Unidos, confirmam que o início de um matrimônio configura uma fase áurea — e que o desafio é justamente nunca parar de alimentar o elo para não deixá-lo se romper.
Os dados americanos ganham eco no Brasil, onde os casamentos cresceram 33% em duas décadas. Só de 2020 a 2021, o mais recente registro disponível, eles pularam de 757 000 para 932 000. O grupo dos divorciados também expandiu, mas em menor velocidade — de 331 000 eles saltaram para 386 000 no mesmo período. “Em vários pontos do mundo, inclusive no Brasil, o casamento ainda é visto como um rito de passagem que proporciona senso de pertencimento na sociedade”, observa a socióloga Maira Soares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A ampla literatura produzida sobre esse assunto que tanto move as pessoas — seja por desejarem ou não se unir a alguém — mostra que os que conseguem contornar os obstáculos que se põem na caminhada a dois são, não por acaso, aqueles que nutrem confiança mútua, trocam ideias e se divertem em dupla. “Sempre haverá sofrimento, mas está comprovado que a amizade precisa ser realmente forte para que um casal supere as dificuldades”, afirma o psicólogo Bruno Cardoso.
A passagem do tempo, fonte de angústia para uma ampla fatia da espécie que teme o envelhecimento, também parece se tornar mais suave quando transcorre em boa companhia. Uma pesquisa britânica publicada no Journal of Happiness Studies aponta que aqueles que insistiram no matrimônio não apenas mantiveram índices mais perenes de felicidade como frearam com maior vigor a chamada crise da meia-idade. O estudo reforça que esses benéficos impactos têm suas raízes no companheirismo, que se sobrepõe ao amor romântico e à vida sexual. No Brasil, um levantamento do Instituto do Casal chegou ao mesmo lugar: apenas 4% dos entrevistados citam a rotina sexual como o mais importante entre os quesitos envolvidos numa relação duradoura. É a amizade, aí também, que paira acima dos outros.
Em paralelo à multidão que percorre a trilha do altar, o mundo moderno vê brotar uma diversidade de arranjos, a maioria em busca de mais flexibilidade. Nesse chapéu cabem, por exemplo, relações abertas e não monogâmicas — preferência de um de cada cinco americanos, de acordo com a organização internacional YouGov. Especialmente nas fileiras mais jovens, a ideia do amor romântico, movido pela aspiração de achar uma cara-metade, vai cedendo espaço a uma visão menos idealizada e, por vezes, mais fugaz dos relacionamentos. “Essa é uma tendência universal nas novas gerações”, afirma a socióloga Maira Soares.
É verdade que uma parcela vai se cansando da montanha-russa emocional e sai à procura de um par com quem dividir as alegrias e dores do dia a dia, ora sob o mesmo teto, ora em casas separadas. “Muita gente alcança a felicidade com uma série de relacionamentos intensos e rápidos, mas em certo momento se cansa e percebe que está faltando alguma coisa”, explica a psicóloga Marta Souza. Foi assim com o professor Alexandre Pereira, 49 anos e casado há 23. Após uma rotina agitada, ele encontrou uma vida boa ao lado de Alessandra, 47. “Antes eu tinha um bem-estar momentâneo. Hoje, sabendo que posso contar com ela, me vejo mais realizado”, diz. Evidentemente que a via para o bem-viver varia de um indivíduo ao outro, mas, para os que embarcam na aventura do matrimônio, fica a dica do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900): “Não é a ausência de amor, mas a falta de amizade que torna os casamentos infelizes”. Isso posto, que sejam amigos para sempre.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863