Mulheres da geração Z lideram adesão a ideias progressistas no Brasil
Pesquisa mostra que as jovens brasileiras são a única parcela da população em que prevalece a marcha da remodelação dos valores
Uma marca indelével do século XX, que se espalha, nítida e potente, pelos tempos atuais, é o poder de transformação exercido pelas mulheres nos valores, no comportamento e na assimilação do novo por parte da sociedade. Entre as mudanças mais significativas lideradas e protagonizadas por elas estão a conquista do voto feminino, o direito ao divórcio, a entrada no mercado de trabalho, a liberdade sexual e a exposição do papel subserviente que ocupavam nos lares.
Décadas se passaram, a sociedade se reorganizou e as ideias progressistas vêm sendo, nos últimos anos, desafiadas por uma agenda conservadora propagada em muitos casos por mulheres empenhadas em neutralizar avanços, em nome da preservação de costumes e modos tradicionais. Isso significa que elas abriram mão de seu papel na linha de frente das reformas sociais? Não, pelo contrário. No mundo em que vivemos, a única parcela da população que permanece decididamente fincada na marcha da remodelação de valores são as jovens na faixa dos 20, 30 anos, integrantes da agitada e inovadora geração Z.
Um estudo exclusivo da Genial/Quaest com 35 000 entrevistados, encomendado por VEJA, aponta que a ala feminina, dos 18 aos 60 anos, continua sendo mais aberta a mudanças do que a masculina na mesma faixa etária. Mas, no termômetro ideológico em que os grupos se situam mais à esquerda ou mais à direita, todos eles, sejam homens ou mulheres, se encaixam na definição conservadora — com exceção, grite-se no megafone, das moças GenZ, como a turma é chamada (veja detalhes no infográfico). “É movimento que avança de uma geração para a outra”, diz o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest. Aprofundando-nos na pesquisa, vemos que elas se revelam inclusive bem mais progressistas do que suas mães e avós, avanço impulsionado por dois motores: o fato de serem produto de várias gerações alinhadas com mudanças e, claro, o onipresente efeito das redes sociais, que amplificam e massificam as lutas postas em cena. “Trata-se do recorte populacional mais progressista de todos os tempos”, diz a historiadora Veruska Lauriana, especialista em igualdade de gênero da Unisinos.
O grupo feminino que começa na adolescência e vai até os 30 anos acumula, no Brasil e no mundo, características que não só rompem com os estereótipos do século passado como saltam além deles: elas não fazem questão de se encaixar em padrões, são independentes e levantam bandeiras ruidosas, como legalização do aborto e das drogas, cotas raciais e desarmamento civil. Mais de meio século depois das primeiras passeatas pela liberação feminina, que fizeram as ruas trepidar nos anos 1960 e 1970, muitas desapegaram do sonho de suas mães e avós de se casar e ter filhos e se dizem coladas ao desenvolvimento pessoal e de carreira.
Pesquisa recente do King’s College London, entre jovens de 16 a 29 anos, mostrou que quase metade das garotas acredita que o movimento feminista faz bem à sociedade, 10% a mais do que os garotos. A estudante de cinema paulista Luana Coelho, 20 anos, relata que cresceu questionando pilares tradicionais. “Na adolescência, comecei a estudar mais a fundo os conceitos sociais, o que fundamentou meu apoio à descriminalização do aborto e das drogas”, diz. Não raro, valores progressistas desembocam em opções políticas: em 2022, Lula teve mais de 50% das intenções de voto dos eleitores entre 16 e 29 anos, contra 20% de Jair Bolsonaro.
A tendência de mulheres jovens puxarem a marcha das transformações foi confirmada por um conjunto de pesquisas conduzidas pela Universidade Stanford, na Califórnia, e analisadas recentemente pelo jornal inglês Financial Times. O levantamento abrange países avançados, como China, Coreia do Sul e Estados Unidos, mas, segundo alguns especialistas, suas conclusões podem ser ampliadas para o mundo em geral — e elas mostram que nunca tantas mulheres jovens foram tão progressistas. Do outro lado do espectro, o conservadorismo também avança como nunca do lado masculino, estimulando um abismo ideológico de gêneros no campo dos valores — resultado do princípio da soma zero, segundo o qual para uma parcela da sociedade ascender é necessário que outra fique estagnada. “Os homens se sentem ameaçados pela luta feminina para ganhar espaço e o ressentimento estimula posicionamentos sexistas e de extrema direita entre eles”, diz Alice Evans, professora de ciências sociais de Stanford, à frente das pesquisas.
O conservadorismo não prevalece da mesma forma em todas as faixas etárias da ala masculina — os estudos apontam que os garotos da geração Z se sentem pressionados a participar das discussões sobre gênero e outras questões sociais e são os primeiros a se alinhar às pautas progressistas. “O questionamento do papel da masculinidade no Brasil é recente. Mas as mulheres, motores de uma transformação social, acabam fazendo com que os parceiros reflitam mais”, observa a historiadora Veruska. O estudante de tecnologia da informação Guilherme Dias, 23 anos, reconhece que ainda vê o mundo com olhos mais conservadores do que suas amigas. “Pelo lugar que ocupam na sociedade, elas sentem na pele algumas questões e se posicionam à frente de nós, homens”, admite. De um modo geral, porém, entre eles o caminho da mudança é cheio de obstáculos e o discurso sobre igualdade de gêneros ainda causa arrepios, favorecendo a formação de grupos como o Red Pill, que prega que as mulheres os estão manipulando para dominar o mundo e questiona os direitos por elas conquistados. “O conservadorismo masculino é uma forma de eles resistirem a abrir mão dos privilégios a que estão acostumados”, afirma a socióloga Marcela Castro, da Universidade Federal do Piauí.
Em contraponto aos macho men da internet, as bolhas feministas criadas nas redes sociais também estimulam o ímpeto reformista das adolescentes e jovens revoltadas com a permanência de desigualdades, levando o debate às rodinhas de amigas em todos os lugares. “É uma geração que cresceu em um contexto de efervescência tecnológica, com acesso à informação como nunca se viu antes”, diz Lila Xavier, vice-presidente da Rede de Pesquisadores e Pesquisadoras da Juventude Brasileira. A estudante de relações públicas carioca Thaís Monteiro, 23 anos, passou a se identificar com ideias progressistas ainda na escola. Com o tempo e com a ajuda das redes, foi se aprofundando no debate sobre machismo e suas consequências na vida da mulher e se tornou cada vez mais criteriosa nos relacionamentos. “Hoje digo que não quero me casar de jeito nenhum. Entendi que o casamento é mais uma das tradições que reproduzem a misoginia, a ideia de que a mulher é submissa e pertence à cozinha”, diz Thaís. E assim, com a igualdade na cabeça e a visão de uma sociedade mais aberta no futuro, as garotas GenZ vão fazendo girar com incomparável potência a necessária roda revolucionária.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884