Mais poder, menos dinheiro: os desafios das mulheres que ocupam cargos de chefia
Elas demonstram um nível elevado de confiança, mas o salário delas continua menor

Tem sido um longo caminho que já leva quase dois séculos. Primeiro, em plena Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX, rompeu-se o muro das fábricas para suprir a demanda por ofícios delicados, difíceis de serem desempenhados por mãos masculinas. Depois, no século XX, diante de duas guerras mundiais, abriu-se mercado para diversas atividades que, até então, eram exclusivamente desempenhadas pelos homens convocados para as frentes de batalha. Por fim, derrubaram-se as catracas dos escritórios para empregos de fundo intelectual, que costumam ser bem remunerados, reflexo direto da maior presença feminina nos bancos das universidades. Apesar dos inúmeros obstáculos, há anos as mulheres vêm conquistando seu espaço no mercado de trabalho, em um processo que quase nunca se deu sem lutas, deflagradas nos anos 1960.

É inegável que ainda há imensas barreiras a serem derrubadas. A equiparação salarial e a presença igualitária nos cargos de liderança estão distantes no horizonte. São evidências do machismo e misoginia ainda predominantes. Há, contudo, uma boa notícia: em todo o mundo, as trabalhadoras nunca estiveram tão preparadas para romper o que se convencionou chamar de “teto de vidro”, invisível, mas impeditivo. As mulheres, indicam recentes pesquisas, desenvolveram habilidades para vencer os desafios. Dados de um levantamento conduzido pela HP com 15 600 profissionais, realizado em doze países, revela que 54% das representantes femininas em cargos de chefia acreditam ter as ferramentas emocionais necessárias para desempenhar sua função, enquanto apenas 42% da ala masculina demonstra a mesma segurança. “Entender meus valores, reconhecer minhas vulnerabilidades e transformar desafios em aprendizados me ajudou a construir uma confiança que não depende apenas de resultados externos, mas de uma base interna sólida”, diz a empresária do ramo cultural Fernanda Machado, 39 anos.
A vantagem feminina se destaca especialmente nas chamadas soft skills, as competências relacionadas à gestão de pessoas, cada vez mais valorizadas pelas empresas. Quando perguntadas sobre empatia e inteligência emocional, 52% delas se dizem autoconfiantes, ante 39% dos homens. “Essas capacidades, desvalorizadas no passado, têm se mostrado essenciais em contextos profissionais mais humanos e saudáveis”, diz a psicóloga Cláudia Melo. “Com isso, mulheres têm se sentido mais autorizadas a ocupar esses espaços.”
Aos poucos, elas começam a se destacar também em áreas relacionadas aos conhecimentos técnicos, fruto da maior capacitação à qual costumam recorrer mais que os homens. Quase metade das entrevistadas disse dominar recursos como computação, apresentação e marketing, ao passo que somente 38% dos trabalhadores do sexo masculino se viram na mesma condição.
No universo feminino, o conhecimento tem se apresentado como a estrada mais segura para os cargos de destaque, posição em que as mulheres brasileiras já saem na frente, uma vez que têm dois anos a mais de escolaridade que os homens e já são maioria nas universidades. Pesquisas apontam ainda que elas procuram mais cursos de desenvolvimento pessoal do que eles. “Tenho consciência das habilidades técnicas e comportamentais que tenho e, também, daquelas que não possuo, e preciso evoluir”, afirma Ana Cristina Rosa Garcia, vice-presidente corporativa do Banco do Brasil.

Não raras são as ocasiões, no entanto, em que o autoconhecimento se transforma em cobrança excessiva. Líderes do sexo feminino relatam com frequência questionarem a própria capacidade de dar conta de todos os desafios impostos a quem ocupa a cadeira de chefe. À frente da Cia de Talentos, principal empresa de RH do país, a paulista Sofia Esteves, 62 anos, não esquece do ambiente hostil que encontrou na juventude. “Há quarenta anos, era uma área absolutamente masculina. Precisei me posicionar e me qualificar muito para chegar aonde estou”, diz a psicóloga, que ao longo da carreira se inscreveu em cursos de especialização nas áreas de administração e empreendedorismo. “A mulher carrega um peso maior. Me sabotei muito e cheguei a achar que eu era uma farsa profissional, até entender que sou realmente boa.”
Não se trata de qualquer inclinação natural à síndrome de impostora, mecanismo psicológico caracterizado pela sensação de que o sucesso não é merecido. Em um mundo profissional ainda regido majoritariamente por homens, os bloqueios que cercam o alto escalão das companhias são maiores e mais numerosos para as mulheres. “Em ambientes majoritariamente masculinos, não basta dominar o conteúdo, é preciso também se reconhecer como legítima naquele espaço”, diz Danielle Monteiro, advogada à frente do escritório Albuquerque Melo, em São Paulo. “Isso exige suportar silêncios, resistir a dúvidas suas e dos outros, e mesmo assim continuar se colocando.” O desconforto, não raro, é nítido. Um a cada quatro brasileiros se diz incomodado ao ser comandado por mulheres, segundo a Ipsos.

As dificuldades de furar a bolha da testosterona se tornam evidentes quando traduzidas em números: a participação feminina em cargos de liderança subiu apenas 3,4 pontos percentuais em uma década — de 35,7%, foi para 39,1%, entre 2013 e 2023 —, relata a Confederação Nacional da Indústria (CNI). A comparação de rendimentos é ainda mais escandalosa. Em pleno século XXI, as mulheres ganham em média 20% a menos do que os homens, segundo relatório da ONU. No Brasil, as mulheres em cargos de gerência, ou acima, têm um salário 27% menor do que seus pares homens, conforme aponta um relatório dos ministérios do Trabalho e das Mulheres, uma realidade que praticamente não mudou ao longo dos últimos três anos (veja o quadro). A situação afronta os princípios da Constituição Brasileira e a CLT. O país conta até com uma lei para assegurar a igualdade salarial, proibindo expressamente a disparidade de gêneros na remuneração. “A maioria das organizações, porém, nem sequer implementou programas voltados para diminuir a desigualdade de gênero”, diz a advogada trabalhista Cátia Vita.
Um dos maiores entraves para o desenvolvimento profissional feminino segue sendo o mundo com que as mulheres se deparam depois de bater o ponto. Em casa, uma infinidade de tarefas domésticas costuma recair sobre suas costas, enquanto os compromissos com o trabalho, cada vez mais numerosos e demandantes, acabam ficando em segundo plano. “Há mulheres extremamente competentes e confiantes que encontram um ‘teto de vidro’, obstáculos invisíveis, mas reais, que limitam sua ascensão. A dupla jornada é um deles”, comenta Rosa Bernhoeft, especialista em gestão de pessoas da Alba Consultoria.

Um levantamento do IBGE aponta que elas passam, em média, 21,3 horas semanais em atividades do lar, enquanto os homens despendem apenas 11,7 horas. Para se tornar CEO de uma editora, a paulista Andréia Roma, 46 anos, precisou adequar a rotina e contar com o apoio do marido na divisão das responsabilidades e na criação dos filhos. Algo básico, mas nem sempre comum. “Conciliar maternidade, gestão e uma rotina intensa de projetos sempre demandou muito equilíbrio emocional e planejamento”, conta ela, que sempre se sentiu mais cobrada no serviço do que os colegas homens. “Precisei aprender a delegar, priorizar o que realmente importa e reconhecer que não posso, nem preciso, dar conta de tudo sozinha.”
Fazer com que mais mulheres cheguem ao topo das organizações não é algo que cabe somente a elas. Políticas empresariais concretas, como programas de mentoria e auditorias salariais, podem ser o impulso que falta rumo à igualdade no mercado de trabalho. Mais do que uma questão de justiça, as empresas têm bons motivos para implementá-las. Um estudo da consultoria global McKinsey mostra que companhias com gerentes femininas apresentam crescimento 21% superior ao de organizações comandadas apenas por homens. Cada mulher que chega lá ajuda a reescrever as regras do jogo, e assim deve caminhar a humanidade, felizmente.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945