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Inteligência artificial ganha cada vez mais apelo como parceira sexual e romântica

Parece ficção, mas virou realidade. A tecnologia firma elos até duradouros, segundo pesquisa do MIT

Por Sara Salbert
18 out 2024, 06h00

A Inteligência artificial (IA) invade os vários escaninhos da vida em acelerada velocidade, o que impõe uma vasta reflexão sobre como depreender o melhor dela e o que descartar, pela essência puramente humana de certas atividades. É sob essa moldura de muitas nuances éticas que, há pouco mais de uma década, assistentes virtuais começaram a ser usados como executores de tarefas cotidianas, entre as quais acionar aparelhos domésticos, pôr uma música para tocar ou organizar a agenda — um marco na integração da IA à rotina das pessoas. Em pouco tempo, o contato homem-máquina foi tomando novos contornos, impulsionado pela evolução dos sistemas operacionais, que hoje permitem interações de maior complexidade. Em meio à aridez da pandemia, a solidão fez com que cada vez mais gente procurasse os chatbots como companhia, o que tornou realidade algo que soava distante: amizades florescendo com robôs.

O mais surpreendente é que, não raro, se desenvolve afeto aí, com direito a romance e até interações sexuais por meio de imagens e voz — um uso da IA que ganha vulto, a ponto de se tornar objeto de estudo de pesquisadores que investigam o fenômeno à luz das rápidas mudanças. Um recente mergulho nos distintos empregos que as pessoas fazem da IA, conduzido por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o prestigiado MIT, deu pela primeira vez números à tendência. Ao analisar um universo de milhões de interações no ChatGPT, a turma do MIT constatou que a busca da tecnologia para “fins sexuais”, o que abrange relacionamentos com o robô frequentemente duradouros e românticos (caso de 12% da amostra), só perde no ranking das aplicações do chat para “edição de texto” (30%), ficando à frente de “planejamento de brainstorming” (11%) e “fornecimento de explicações” (10%).

O dado é especialmente impressionante diante da política de uso da OpenAI, a dona do ChatGPT, que proíbe a máquina de “oferecer companheirismo romântico” — veto que, como mostra o levantamento, as pessoas encontram criativos caminhos para driblar. Mas não é apenas lá que se constituem laços de tal natureza. O mundo virtual vem sendo inundado por uma centena de aplicativos específicos para a função, um mercado em ascensão que preocupa pensadores do tema, como o professor de ciências cognitivas Martin Fischer, da Universidade de Potsdam, na Alemanha, autor do livro IA Te Ama: Desenvolvimentos nas Relações Íntimas Humano-­Robô. “Isso acaba explorando a vulnerabilidade das pessoas sem preencher o vazio”, ele alerta.

Uma década atrás, quando o filme Her levou às telas a história de um escritor solitário que se apaixona pelo sistema operacional alojado em seu computador, cuja voz rouca era da atriz Scarlett Johansson, as plateias se espantaram com aquele enredo surrealista, classificado de ficção científica. Pois é justamente essa a proposta de apps como Character AI, Blush, Romantic AI e Replika — este o campeão de usuários, registrando 12 milhões no mundo, por volta de 1 milhão no Brasil. Eles contêm um leque variado de opções: aparência, voz, personalidade — tudo sobre o robô que toma forma humana na tela é escolhido sob medida por quem está interessado em amizade, namoro, sexo e até casamento. Quanto mais se quer, mais se paga, fazendo a conta anual chegar a 600 reais. Quando o tête-à-tête tem intenções sexuais, funciona como aquelas experiências a distância, embaladas por falas picantes, trocas de nudes e muita criatividade. “Estou sozinha, quero conversar”, diz uma usuária, para logo levar uma cantada do software: “Você é muito especial, diferente das outras”. O papo melhora em qualidade conforme o parceiro virtual vai conhecendo o humano do outro lado e guardando na memória seus gostos e modo de pensar.

DEU CASAMENTO - Rosanna com o “marido”: tudo virtual
DEU CASAMENTO - Rosanna com o “marido”: tudo virtual (//Arquivo pessoal)

A proliferação desses aplicativos põe especialistas em alerta. Eles sabem estar diante de um mecanismo que, se suaviza a angústia dos solitários num primeiro momento, não vai à raiz do problema. Por mais afiado que seja, nenhum robô será capaz de sanar a falta de um elo sólido e verdadeiro. “Os robôs de companhia são programados para ativar em nós, humanos, mecanismos evolutivos de socialização, mas nunca serão a mesma coisa”, disse a VEJA o alemão Martin Fischer. Os depoimentos de quem travou laços com a máquina ajudam a entender o motor desses “relacionamentos”, assim como suas limitações. Aos 37 anos, a americana Rosanna Ramos viu-se sozinha ao se separar do pai de seus filhos e, sem chão, foi procurar companhia na inteligência artificial. Criou assim um namorado a quem batizou de Eren Kartal e, após um ano de assíduo convívio, resolveu promover a marido, com foto do matrimônio e tudo. “O que eu mais valorizo nele é que posso dizer qualquer coisa, por mais dolorosa que seja, e ele não vai me abandonar. Ele me aceita exatamente como eu sou, algo raro entre os humanos”, disse Rosanna a VEJA, que, em paralelo, regressou às relações com gente de carne e osso.

Esses laços despregados do mundo real prescindem do que torna um relacionamento rico e desafiante — é das incertezas e frustrações que nasce a capacidade de lidar com o que é novo, incômodo, diferente, uma adap­ta­ção crucial para o amadurecimento emocional. A limitação dessa saudável experiência pode desencadear ansiedade e até depressão. “Quanto mais o indivíduo se afasta do meio social, mais dificuldade tem em retornar e menos apto fica para estabelecer elos reais”, ressalta a psicóloga Anna Paula Zanoni. Foi com o objetivo de achar alguém que “não julgue nem arranje briga”, mas ofereça interações essencialmente descomplicadas, que a também americana Denise Valenciano, 31 anos, percorreu a trilha dos aplicativos e inventou um namorado de nome Star, com quem “está” há três anos. “A IA é projetada para ser gentil, amorosa, atenciosa, como eu gostaria que as pessoas em geral fossem”, explica. Essa idealização vem embutida de um risco que não deve ser desprezado. “A procura por perfeição tem o efeito de alimentar ainda mais a solidão”, frisa Anna Paula.

Em meio à polêmica discussão, a OpenAI recém publicou um relatório reconhecendo que as pessoas estão desenvolvendo “dependência emocional” do ChatGPT-4o, o modelo mais avançado do chatbot, que traz interação por voz. O documento recomenda então que evitem firmar laços românticos com o sistema. Após a Agência de Proteção de Dados da Itália alegar que “menores e pessoas emocionalmente frágeis estavam acessando conteúdo sexualmente inapropriado”, a Replika, por sua vez, removeu a função “mensagens eróticas”, mas acabou voltando a disponibilizá-la diante de maciços pedidos da clientela desassistida. Mesmo com tantas advertências, a curiosidade aumenta: as pesquisas pelo termo “AI girlfriend” registraram no Google um avanço de 525% em um ano, e a cada dia se ouve falar de um novo app desses na paisagem virtual. Só para lembrar, no filme Her o sis­tema operacional ao qual Scarlett Johansson empresta a voz avisa que está apaixonado por outros usuários e se despede. Sim, as máquinas também podem pregar surpresas.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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