Uma boa olhada no velho álbum de fotografia da família é uma maneira infalível de notar as divergências físicas entre nós e nossos antepassados. Repare bem na foto de seu avô: aos 40 anos, ele provavelmente parecia bem mais velho. Note como aquela tia querida de 50 anos tinha feições de idosa. Agora olhe para si próprio: os quarentões, cinquentões e todos os entões da atualidade são muito diferentes daqueles que os antecederam. No século XXI, os avanços da medicina associados ao aumento da qualidade de vida fizeram com que as atuais gerações cheguem ao amadurecimento em melhor forma, mais ativos e produtivos — tanto do ponto de vista físico quanto do intelectual — do que as pessoas de ontem jamais foram. Qual é o sentido de dizer que um profissional de 50 anos esteja caminhando para o fim de carreira? Que lógica há em considerar senhoras e senhores de 60 anos incapazes de realizar tarefas que um jovem faria? Porém, por mais que a nova realidade bata à porta, o preconceito contra pessoas que deixaram a juventude persiste. Chama-se isso de etarismo, a nova fronteira da diversidade que começa a ser combatida com o mesmo afinco que outras formas de intolerância.
Basta acompanhar o desempenho extraordinário do surfista Kelly Slater em uma etapa do Mundial da modalidade para entender o que um cinquentão pode fazer. Com cinco décadas redondas, Slater venceu a competição que disputou com garotos que não tinham a metade da idade dele. Agora, desponta como candidato ao 12º título mundial. Não custa lembrar: surfe exige força, equilíbrio, rapidez de raciocínio, criatividade para a execução das manobras e uma dose extra de ousadia que muitos consideravam patrimônio exclusivo da molecada. Exemplos não faltam. Os atores Flávia Alessandra, 47 anos, e Rodrigo Santoro, 46, usam as redes sociais para mostrar que continuam belos, ativos e sarados — e mais produtivos do que nunca.
Mesmo com essa nova realidade, o movimento contra o etarismo nunca esteve tão em evidência. É assunto central da trama de Um Lugar ao Sol, novela das 9 da Globo que mostra a atriz Andréa Beltrão no papel de uma modelo de 50 anos lidando com o preconceito e o “prazo de validade” da carreira que escolheu. Ser retratado no principal folhetim da televisão aberta é sinal de que a sociedade debate o problema em diversas esferas. “Estamos vivendo um período de transição”, diz a consultora Silvia Ruiz, autora do blog Ageless. “A idade ainda é uma questão complicada para alguns, mas existe uma geração que está se rebelando contra a ideia de esconder quantos anos a pessoa tem.” É bom que seja assim.
A mudança passa necessariamente pela revisão de preconceitos. Significa abandonar de vez expressões como “cabeças brancas” ou o elogio torto de que alguém está “em ótima forma… para a idade”. O movimento “Em Desconstrução”, iniciativa do ativista Marcos Guimarães, que já abordou o racismo e o capacitismo e agora se debruça contra o etarismo. Ele convidou personalidades como a empresária Luiza Trajano, a atriz Nany People e a cicloativista Renata Falzoni, para estrelar a campanha “Você Me Vê Como Eu Me Vejo?”, mostrando que a questão psicológica influencia a jornada de autoafirmação. A opção de incluir principalmente mulheres não foi à toa. “O envelhecimento é muito mais duro com elas”, diz Guimarães. “Para a sociedade, os homens ficam mais interessantes e charmosos. As mulheres não. Elas precisam estar sempre jovens.”
O etarismo costuma ser perverso no mercado de trabalho, mas isso começa a mudar. Segundo amplo estudo realizado no Brasil pela empresa de tecnologia Gupy, as contratações de pessoas entre 40 e 50 anos cresceram 95% de janeiro a setembro de 2021 na comparação com o mesmo período do ano passado. Em nenhuma faixa etária o avanço foi tão expressivo. Uma das explicações é que, nas crises — o período considerado para o levantamento foi marcado pela pandemia —, as empresas buscam profissionais mais tarimbados. O fenômeno tende a se consolidar. Diversas empresas lançaram programas para incorporar em seus quadros pessoas com mais de 40 anos (veja o quadro), tendência já observada em diversos países.
As conquistas aparecem até em áreas que consagraram os estereótipos da beleza juvenil. Na mais recente semana de moda de Paris, grifes de luxo como a Valentino puseram lado a lado na passarela modelos mal saídas dos 20 anos e mulheres maduras. A atriz inglesa Helen Mirren, 76 anos, esteve à frente do desfile da L’Oréal, exibindo confiança e estilo. Até as supermodelos que na década de 1980 estrelaram campanhas globais de tremenda repercussão — e que eram tratadas como semideusas — agora se posicionam contra a visão datada de que a beleza só existe na juventude. Também há pouco tempo, a atriz Brooke Shields posou, com bem vividos 56 anos, para fotos de topless. Ela proibiu retoques digitais na imagem e exagero na aplicação de cosméticos, que esconderiam os sinais da idade.
A indústria dos cosméticos, aliás, é protagonista das mudanças na sociedade. Se antes havia montes de produtos que prometiam a ilusão da juventude eterna, hoje há opções específicas para cada faixa etária e uma compreensão maior sobre os cuidados necessários em diferentes estágios da vida. Uma das linhas mais famosas para o público maduro, a Chronos, da Natura, foi lançada há 35 anos, quando o etarismo nem mesmo era debatido. “Foi um marco, e sustentamos essa posição, trazendo um lugar de luz, e não de sombra, em torno da passagem de tempo”, afirma Maria Paula Fonseca, diretora global da marca. Além de colocar a idade ideal para cada produto no rótulo, a empresa usa expressões como “antissinais”, em vez de “antienvelhecimento”, termo preconceituoso que expõe os vícios do setor. “É um apagamento que acontece em vários aspectos. A sociedade ocidental não valoriza o passar do tempo. Fala-se em perdas, e não em ganhos”, diz a executiva.
O envelhecimento populacional é um fenômeno global. Em 2019, eram 703 milhões de pessoas com mais de 65 anos. O número vai dobrar, passando para 1,5 bilhão até 2050. No Brasil, o fenômeno se dá em velocidade maior. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até 2050 30% da população estará acima dos 60 anos. A porcentagem passará de 40% até o fim do século. “Com isso, toda mudança se torna muito mais urgente, principalmente no mercado de trabalho”, diz Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador da área de Economia Aplicada da FGV-Ibre.
Como se sabe, é impossível — ainda — frear o passar dos anos, mas pesquisadores de diversas partes do mundo têm trabalho para isso. “O envelhecimento é algo codificado no DNA e, se algo está codificado, é possível descobrir seu segredo”, afirmou em entrevista recente o médico sul-coreano Joon Yun, que comanda o Palo Alto Investors, fundo americano de investimentos de 1 bilhão de dólares. Estender a vida indefinidamente é um desejo ancestral da humanidade. Ainda está distante o dia em que isso será possível, mas a ciência proporciona inúmeros avanços.
No livro 21 Lições para o Século 21, o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers Sapiens e Homo Deus, diz que a revolução tecnológica trará profundos impactos para o corpo humano, devendo melhorar as habilidades físicas e cognitivas. Ele ressalta, contudo, que a evolução ficará restrita aos muito ricos, à medida que só terão acesso aos tratamentos aqueles que puderem desembolsar fortunas por eles. Para Harari, há o risco de o futuro reservar uma nova forma de discriminação que separará os seres evoluídos tecnologicamente daqueles desprovidos dessa possibilidade.
O tema é sensível. No ano passado, o pesquisador russo Sergey Young publicou o livro The Science and Technology of Growing Young (ainda sem tradução para o português), no qual assegura que a primeira pessoa a viver 200 anos já nasceu. Sua teoria é baseada no ritmo de desenvolvimento da medicina, que acelera em velocidade jamais vista. Fanático por números, Young apoia suas análises em projeções matemáticas. “Há oito décadas, a expectativa de vida era de 43 anos. Hoje, nos Estados Unidos, ela está em torno de 80 anos”, disse. Para ele, é razoável supor que, dado o ritmo intenso de descobertas da ciência, é possível que um humano comemore dois séculos de existência. Utopias à parte, a verdade é que a vida é preciosa em toda a sua jornada, a despeito dos anos registrados no calendário, que já não valem tanto. Aproveitá-la ao máximo é algo que todos deveriam fazer, sejam jovens ou maduros, sem pré-julgamentos ou preconceito. Idade, afinal, não é documento.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778