Figura da ‘femme fatale’ volta com força ao mundo fashion, mas com uma novidade
Clássico da literatura policial e de filmes dos anos 1930 e 1940 retorna, agora como símbolo de poder e não de manipulação

A figura da mulher fatal, a femme fatale na expressão em francês, como celebrada pelo cinema, com sua aura de mistério, sedução e poder, tem fascinado e inspirado a cultura popular desde sempre. Brotou nas lendas mitológicas, como na Circe inebriante da Odisseia de Homero, que subjugava os homens e desafiava as estruturas patriarcais da sociedade grega. Ganhou notoriedade por meio da literatura de suspense policial — e dá-lhe imaginação na mente dos leitores —, para então explodir nos filmes noir de Hollywood. É natural, hoje, em tempos de força e independência femininas, que voltasse à cena, como manifesto. E não deu outra: nas passarelas, nos tapetes vermelhos, nas capas de revistas de moda e nas redes sociais, é claro, a versão contemporânea do lânguido estilo virou tendência. “Voltou para seduzir, mas também como símbolo de empoderamento”, diz o cabeleireiro paulistano Vini Catucci.

No atual modelo, talvez porque a mensagem seja mais direta, possivelmente mais adequada a fotos no Instagram, os cabelos é que dão o recado, nem sempre platinados, mas frequentemente estruturados, volumosos e meticulosamente elaborados, em corte que remete às divas das telas dos clássicos de meados do século XX. Com uma ressalva, sublinhe-se: no passado recente, ao menos na ficção, o nome do jogo era manipulação. Agora não: as mulheres anseiam marcar posição, seguras e confiantes, e o mundo masculino que trate de acompanhá-las. Na nova temporada, a estética foi incorporada por celebridades como Kim Kardashian, Sabrina Carpenter e Dua Lipa, lá fora, e Anitta e Marina Ruy Barbosa, entre nós. Representam um aceno a lendas do passado, como Jean Harlow e Lauren Bacall, dos anos 1930 e 1940. Sem esquecer de Marilyn Monroe, que virou lugar-comum.
Mas por que, afinal de contas, a imagem arrebatadora continua a impressionar, como se saída da iluminação dramática de um set cinematográfico, em meio a fumaça de cigarro? Muito possivelmente porque, no século XXI, a afirmação faz toda a diferença — e nada como chegar chegando, com impacto visual, sinônimo de liberdade. É interessante notar, ainda, que a emblemática personagem tem sutilezas e inteligência que fogem ao óbvio, e daí talvez o interesse renovado, o fascínio que não cessa. A escritora americana Kim Krizan fez um excelente apanhado da aventura humana, demasiadamente humana, da mítica personagem no livro Original Sins: Trade Secrets of the Femme Fatale (Pecados Originais: Segredos de Negócios da Mulher Fatal, em tradução livre). “Ela representa o perigo, ligeiramente sobrenatural. Cria sua própria publicidade, contorna os papéis ruins que não deseja desempenhar, comanda as atenções e se diverte tentando.” Diversão, eis o motor da história, porque a graça e a ironia tudo podem, embebidas em charme sexy.

É difícil pôr em palavras a Gilda de Rita Hayworth, do filme homônimo de 1946, porque nunca houve ninguém como ela, mas convém lembrar de uma cena e de um diálogo que ajudam a entender a permanência do fenômeno, do jeito provocativo de ser. Antes de entrar no seu quarto, o marido, que quer apresentá-la ao homem interpretado por Glenn Ford, pergunta: “Gilda, você está vestida?”. Ela levanta o tronco e a cabeça, desloca o ar, o mundo para de respirar, e responde, depois que enxerga o convidado: “Eu? Claro, estou vestida”. Sim, estava, mas provocante ao longo de toda a fita, com ecos ainda hoje. Longa vida à mulher fatal.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922