Falta de bebês já é realidade nos países mais ricos. O Brasil está na fila
Tendência traz profundas consequências econômicas. O país ainda tem tempo de aprender a conviver com esse mundo novo
Das frias planilhas usadas pelos demógrafos para estimar contingentes populacionais, um sinal de alerta tem soado com insistência em todo o mundo, embutido em uma curva em franco declínio: a que monitora e aponta para o número de bebês que ocupam e vão ocupar os berçários das maternidades. Nos países mais desenvolvidos, a escassez de nascimentos é uma preocupante realidade, com cidades da zona rural agonizando, sumindo do mapa e governos investindo pesado para reverter a perspectiva de, no futuro, não haver gente suficiente para sustentar a economia e o nível de vida. No Brasil, o cenário ainda não é tão aflitivo, mas caminha para a incômoda situação: dados recém-divulgados pelo IBGE mostram que, em 2022, a natalidade caiu pela quarta vez consecutiva. É hora de olhar para fora, observar o que está sendo feito, sacudir a apatia e tomar providências para restabelecer a tempo o imprescindível equilíbrio na questão populacional.
Na frieza da estatística, a população mundial segue aumentando, embora em ritmo menos vigoroso do que já foi: alcançou 8 bilhões de pessoas em 2022 e prevê-se que chegue a 10 bilhões até 2057, quando deve se estabilizar. As duas trajetórias — população subindo e nascimentos caindo — combinadas prenunciam uma desaceleração saudável no número de pessoas sobre o planeta, bem-vinda diante de seus recursos limitados. O problema — eis aí o drama — é que a maior concentração de bebês está na África e em outras regiões pobres, enquanto a Europa, por exemplo, se vê à míngua de recém-nascidos. No mundo rico, tanto as taxas de natalidade (número de nascimentos por 1 000 habitantes) quanto de fecundidade (média de filhos por mulher em idade reprodutiva) vêm caindo gradual e constantemente, enquanto o grupo de idosos não para de crescer. O tópico que atormenta os governos e especialistas em economia e políticas públicas: de onde sairá a mão de obra ativa que sustentará as legiões de aposentados, de modo a manter saudáveis as engrenagens do progresso?
O problema já começa a dar as caras em vinte dos 22 países mais prósperos, todos detentores de taxa de fecundidade inferior a 2,1 filhos por mulher, o necessário para garantir que a quantidade de habitantes fique pelo menos estável. Esse naco do globo vem buscando formas de convencer os casais a se aventurar pelas turbulentas águas da paternidade, oferecendo incentivos em dinheiro e benesses sociais. Sabem que, sem novos cidadãos economicamente ativos e pagadores de impostos, será cada vez mais difícil equilibrar um sistema de previdência em que há mais beneficiários do que contribuintes e ainda serviços de saúde sob crescente demanda em razão do envelhecimento da sociedade.
No Brasil, nasceram 2 542 298 bebês em 2022, o menor número já registrado, 11% menos do que a média anual entre 2010 e 2019, retrato da intensificação de um processo iniciado nos anos 1960 (veja no quadro). O ponto crítico está agendado para 2035, quando ocorrerá o fim do festejado “bônus demográfico”, período em que o ritmo de crescimento da parcela de pessoas em idade produtiva supera o de crianças e idosos. “A janela está se fechando. O país não conseguiu enriquecer antes de envelhecer e é mais difícil fazê-lo depois que isso acontecer”, diz o demógrafo José Eustáquio Alves.
A decisão de ter menos filhos, ou de não ter nenhum, está diretamente relacionada a conhecidas mudanças de hábitos, como o aumento do custo de vida nas grandes cidades, a bem-vinda entrada da mulher no mercado de trabalho e a disseminação de técnicas contraceptivas. Para as novas gerações, soma-se a esses fatores uma grande dose de insegurança atrelada às mudanças climáticas. “Embora as últimas décadas tenham sido prósperas, estamos permanentemente conectados com todas as instabilidades do mundo”, afirma Martin Bujard, vice-diretor do Instituto Federal de Pesquisa Populacional (BiB), da Alemanha. “A insegurança não é necessariamente maior do que em outras épocas, mas a percepção dela certamente é.” A ceramista Clara Jardim, de 25 anos, não pensa em trazer ao mundo um bebê sujeito aos desastres naturais acelerados pelo aquecimento global. “Não é justo nem com a criança nem com o planeta”, diz. “Minha melhor ação como mãe é não ter filho nenhum.”
Em alguns países, a receita mais disseminada para incentivar os casais a se multiplicar tem sido a da ajuda financeira: a chegada de cada rebento é premiada pelo governo com uma contribuição em dinheiro, em parcela única ou mensal, dependendo do país. A política se disseminou pela Europa e pela Ásia, mas até agora não reverteu significativamente a curva da fertilidade porque, segundo especialistas, outras áreas, além da remuneração financeira, precisam ser abordadas. “Taxas de fecundidade estão vinculadas ao equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, entre renda e custo de vida e também à igualdade de gênero”, diz Michael Herrmann, gerente do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “Essas três condições precisam ser garantidas. Caso contrário, é difícil reverter o cenário.”
Na Espanha, os pais recebem 1 000 euros por filho e recentemente os homens tiveram a licença-paternidade ampliada de duas para dezesseis semanas, igual à das mulheres. Mesmo assim, o país segue na rabeira da taxa de fecundidade do continente, atrás apenas da pequena ilha de Malta. Na União Europeia, também envelhecem rápido e produzem muito menos filhos a Itália, a Grécia e a Alemanha. Bebês estão se tornando raros até em regiões dotadas de amplo colchão social, como a Escandinávia. Na Suécia, pioneira na implementação da licença-paternidade com uma lei, em 1974, que dá ao casal 480 dias de afastamento remunerado do trabalho, a fertilidade encolheu de 2 para 1,67 em duas décadas e segue tendência de queda. Movimento mais agudo se observa na Finlândia — 1,46 —, apesar de oferecer um sistema educacional de excelência desde os primeiros anos de vida da criança.
Tanto na Europa como nas demais nações que tentam reverter a curva da natalidade, a maior barreira está em uma mudança intangível e intransponível na cabeça das mulheres: mesmo dispondo de boa situação financeira, elas simplesmente não têm mais a maternidade como meta. “As prioridades de vida mudaram”, diz Jessica Nisén, professora de sociologia da Universidade de Turku, na Finlândia. Com tantos outros estímulos disponíveis no mundo atual, gerar e criar descendentes ficaram para quando der, se der. “Filhos são uma restrição para os rumos que posso tomar”, diz a britânica Chloe Hobart, de 27 anos, que optou por trabalhar com marketing em Lisboa. “Não teria conseguido me mudar de país e avançar na carreira se já fosse mãe.” Nesse ritmo, a força de trabalho tende a minguar nos próximos anos em algumas das principais economias do mundo. Projeções da ONU dão conta de que, até 2050, milhões de pessoas vão completar 65 anos e cruzar a linha da vida ativa, tornando-se aptas, portanto, a se aposentar. Sem bebês à vista para repor essa mão de obra, calcula-se que o Japão perca 19 milhões de trabalhadores; a Rússia, 16 milhões; a Itália, 10 milhões; e o Brasil, 2,8 milhões (veja o mapa). Na Coreia do Sul, país altamente industrializado que registra a menor taxa de fecundidade do mundo (0,72, menos da metade dos almejados 2,1 filhos por mulher em idade reprodutiva), a perda deve chegar a 17 milhões.
Em nenhum lugar, porém, a situação é mais dramática do que na China, onde se prevê, até a metade deste século, um déficit de 216 milhões de trabalhadores — resultado inexorável da política do filho único, a mais radical medida de controle de natalidade implantada por uma nação. No fim da década de 1970, quando o país estava prestes a atingir a marca de 1 bilhão de habitantes e alimentar essa superpopulação era uma tarefa hercúlea, o então presidente Deng Xiaoping praticamente proibiu que casais tivessem mais de um filho, impondo multas pesadas para quem desobedecesse à regra e até promovendo abortos forçados. O Partido Comunista chegou a anunciar, com orgulho, que 400 milhões de chineses deixaram de nascer no meio século seguinte, o que facilitou um vigoroso processo de enriquecimento. A fatura chegou em 2015, quando a curva se inverteu e a medida foi revogada. Hoje a população chinesa está em franco declínio e os esforços do governo para promover mais nascimentos têm se mostrado insuficientes para mudar uma cultura que fincou garras na sociedade.
A saída mais imediata para uma crise desse tipo é buscar braços onde eles estão disponíveis por meio da imigração, mas essa receita, aplicada em outros momentos da história, esbarra na qualificação da mão de obra disposta a tentar a vida em outro país. Bebês em abundância, hoje e no futuro, só mesmo, reafirme-se, na parte mais carente do planeta. Até 2100, o crescimento populacional deverá se concentrar na África Subsaariana, onde a atividade rural predomina e ter filhos é sinônimo justamente de intensificar a força de trabalho. Trata-se de um contingente que não é bem-vindo nos países ricos — pelo contrário, ondas de imigrantes ilegais alimentaram a estupidez da xenofobia, obstáculo para a implantação de qualquer política pró-imigração. O Reino Unido recebeu 1,2 milhão de imigrantes no ano passado, um número recorde, mas só obtiveram autorização para trabalhar no país as pessoas capazes de desempenhar as tarefas que o mundo moderno exige.
Por um caminho distinto, o Japão, a nação mais envelhecida do mundo, onde quase um terço da população tem mais de 60 anos, apostou em prolongar a permanência de seus cidadãos no mercado de trabalho e, no ano passado, elevou a idade mínima de aposentadoria de 60 para 65 anos, com garantia de emprego e ambiente de trabalho adaptado a idosos. Deu resultado: quase 15% dos trabalhadores ali já sopraram setenta velinhas ou mais. Mesmo assim, o governo cogita abrir as portas a imigrantes, o que seria uma notável mudança numa sociedade historicamente avessa a acolher estrangeiros.
Outra aposta viável, e não se deve desdenhá-la, é a tecnologia. A escassez de recursos humanos pode ser suprida com inteligência artificial e robotização, um caminho cada vez mais trilhado e que traz novos e surpreendentes resultados, na troca sensata de seres humanos por máquinas. “Ter uma geração reduzida pode ser benéfico do ponto de vista econômico”, diz o economista David Miles, da Imperial College London. “Podemos esperar aumento da qualidade de vida e inserção ainda maior das mulheres no mercado de trabalho.” A tendência é irreversível e as lições estão aí, prontas para serem estudadas e aperfeiçoadas. É imprescindível que o Brasil aprenda com elas e se prepare, quanto antes, para tirar melhor partido de uma população inevitavelmente mais envelhecida, com menos bebês alegres e fofinhos à sua volta.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888