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“Eu era um alienígena”, diz o escritor Fabricio Carpinejar sobre bullying na escola

Palestrante requisitado, ele conta como foi alfabetizado em casa pela mãe e superou as provocações pesadas na escola com humor e leitura

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 ago 2024, 21h59 - Publicado em 19 ago 2024, 18h17

Eu era um alienígena na escola. Meus pais são escritores e eu estava acostumado com o raciocínio poético e metáforas livres que sempre existiram dentro de casa. Quando eu tive o primeiro contato com a escola, aos seis anos, foi um choque porque ninguém falava por figuras de linguagem. Era como se eu estivesse chegando a um país estrangeiro.

Eu morava em Petrópolis, bairro em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em 1979, ingressei na escola municipal Imperatriz Leopoldina, que ficava a três quadras de casa. Lá, uma simples conversa já era difícil. Imagine o choque, tendo que ser alfabetizado. Eu não consegui acompanhar a turma. Principalmente os ditados dados no início da aula, em que recebi um “não satisfatório” de março até julho. Ali, já estava reprovado porque não consegui nem um “regular” no meu histórico.

Quando chegaram as férias de julho, a escola chegou à conclusão que não teria condições de me alfabetizar. Fui encaminhado a um neurologista que diagnosticou retardo mental, uma dificuldade para o desenvolvimento. Detalhe: eu nunca soube disso. Fui descobrir que tinha esse diagnóstico muito tempo depois, aos 30 anos, quando fui procurar meu histórico escolar porque havia a lenda de que eu tinha ido mal na escola. Quando encontrei aquela folhinha com CRM e um carimbo de hospital, entendi o que minha mãe passou silenciosamente. Ela nunca me colocou rótulo. Por muito tempo, continuei sendo uma garrafa transparente.

Mas quando você erra consecutivamente, vai se isolando mais. Fingia que está acompanhando, mas estava completamente perdido, sempre atrasado. Eu via os meus colegas festejando as notas, aquele regozijo do grupo. Eu não tinha grupo, não tinha melhor amigo, não tinha nada. Era um sofrimento secreto. A minha mãe percebeu e tirou uma licença de dois meses do seu trabalho de professora universitária da PUC do Rio Grande do Sul para pedir à direção da escola uma segunda chance para mim. Pediu dois meses para me ensinar a ler e escrever em casa. Se eu tivesse condições, voltava à escola.

Assim, ela criou uma recreação pedagógica, me ensinando na rua. A calçada na frente de casa foi a lousa onde ela escrevia tudo com pedra. Ela também criou jogos educativos com palavras, como amarelinha, caçador, jogo da velha, jogo da forca. Me ensinava matemática separando feijão. Ficava cinco horas comigo durante o dia e eu pensava que estava brincando com a minha mãe, que estava de férias com ela porque não precisava dividi-la com meus irmãos. E, nisso, fui entendendo que cada palavra morava dentro de outra palavra. E todo aquele caráter lúdico me ligou, me acendeu e eu me encaixei. Houve liga na linguagem. É como se eu tivesse encontrado o meu ritmo, o meu raciocínio.

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Em dois meses, voltei para a escola, muito mais avançado que os meus colegas. Me lembro perfeitamente. Era o dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, quando tirei meu primeiro “ótimo” no ditado. E a partir daí, só “excelente” até o final do ano. Mas por conta dos meus “não satisfatórios” do começo fiquei de recuperação. Foi como uma incredulidade da minha ressureição, mas acabei passando de ano. Foi uma emancipação. Me habilitei a comprar o pão no armazém, me sentindo extremamente importante porque podia mexer com dinheiro, trazer o troco certinho.

No segundo ano, tive dificuldades pontuais e facilmente contornáveis. Mas tudo isso me fez entender que diagnóstico não é destino. É apenas um retrato provisório. Não que estivesse errado, mas é um retrato de um momento. Não é perpétuo, não é uma definição de uma vida, uma súmula de uma existência. É para ser uma radiografia efêmera. O destino é você que faz. E que, no meu caso, inclui a perseverança, a superação, a fé. O que me faltava era estabelecer uma amizade com as palavras. Quando eu a encontrei, tudo se abriu. Quando você é alfabetizado com amor, a educação é perene. E o que é escrito em pedra jamais será apagado.

Bullying e Livros

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Esse não foi o meu único desafio. Passei por outras dificuldades na infância. Para começar, o meu céu da boca é estreito, então falava errado, tive que fazer fonoaudiologia durante cinco anos. Jamais imaginei que algum dia viria a falar em rádio e televisão. Foi realmente um trabalho de lapidação. Passei a vida toda respirando pela boca, então quando consegui aprender a ler e escrever, ainda tive que aprender a falar. E esse desafio também me estimulou.

Além da ajuda da minha mãe, tive a ajuda dos livros. Passei a ler todos em voz alta. Me tornei um leitor voraz e feito de compaixão. Eu dava preferência aos livros da biblioteca que não tinham nenhum leitor na ficha catalográfica. Ficava com pena daqueles que nunca eram retirados. Todos os meus primeiros livros foram os postos de lado, os excluídos como eu. Isso fez com que eu lesse o que as pessoas não liam. Li precocemente “A Divina Comédia” (1843). de Dante Alighieri (1265-1321). De Fernando Pessoa (1888-1935), sei até versos de cor. Gostava de Rubem Braga (1913-1990), Fernando Sabino (1923-2004) e Paulo Mendes Campos (1922-1991). Também das narrativas daquela coleção Vaga-lume (1973), das crônicas “Para gostar de ler” (1980), “A Ilha Perdida” (1944), de (Maria José Dupré (1898-1984), “O Rapto do Garoto de Ouro” (1982), de Marcos Rey (1925-1999). E poesia. Porque as pessoas não liam muito poesia, então era meu forte, na época. Me ajudou a me preparar como orador. E eu gostava do tempo da biblioteca, aquela coisa de devolver o livro em sete dias. Porque me fazia ter disciplina. Contava quantas páginas eu tinha que ler por dia para devolver o livro a tempo.

Hoje, sou um palestrante requisitado, mas nunca pensei em falar publicamente. Quando comecei a publicar meus livros, em nenhum momento passou pela minha cabeça que falaria em público. Eu acreditava que poderia me esconder nos livros. Mas imagina, eu falava errado. Mesmo quando eu superei o problema da escrita, eu não consegui estabelecer diálogos razoáveis e as pessoas me confundiam com um gago. Porque como eu não sabia falar determinadas palavras, eu meio que soletrava. E elas começavam a me dar susto para curar a gagueira.

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Os colegas, naquela banalidade do mal da infância, me faziam ler bula de remédio para rir de mim. Ficava como joguete de um grupo, em que um me empurrava para o outro; roubavam minha merenda escolar, me juravam de briga e eu tinha que fugir, pulando o muro do campo de futebol, nos fundos da escola. Eu vivi um terrorismo psicológico. Eu me abastecia de ternura no âmbito familiar e das leituras para voltar a tortura da manhã seguinte.

As pessoas me chamavam de monstro, de feio, eu recebia tudo que é apelido, fui chamado de todos os nomes que possa imaginar de filmes de terror: Freddy Krueger, Jason, Homem-Elefante. E não podia denunciar porque redobrava a artilharia das tropas inimigas. E existia um “autobullying”, porque não queria que a minha família soubesse que eu não era nada. Eu ficava envergonhado. Eu fazia de tudo para que meus pais, quando me buscassem na escola, o que era raro, não vissem o quanto eu era maltratado. Fingia a boa vizinhança. Mas eu resistia, foi uma fase da minha vida em que eu obedecia ao instinto de sobrevivência, de preservação.

Isso durou até o sétimo ano, quando passei a desenvolver um senso de humor. Eu transformei toda a minha esquisitice em extravagância. Eu passei a rir de mim, a ter autocrítica, a fazer piadas, a usar minha inteligência a meu favor, desarmando ofensas. Nesse momento, eu fui inserido no meio como alguém feliz. Mas eu não era feliz. Você demora para ser feliz depois de tanta tristeza acumulada. Eu tive que fingir felicidade até ser autêntico.

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Psicanálise e Superação

Hoje sou uma pessoa feliz, devidamente psicanalisada. Mesmo tendo começado tarde, porque havia uma pecha, um estigma com a psicologia, já que era a vítima e não o agressor. Comecei a fazer terapia aos 35 anos, por vontade própria. Fui o primeiro na família. Agora, é habitual. E a partir da escrita, eu passei a ser convidado a participar de bate-papo em feiras literárias, saraus, mas nada foi automático. Tive que me estudar e me inventar. Quando você fala errado, seu primeiro impulso é falar cada vez mais rápido para não ser notado. Mas me libertei dessa ansiedade protetiva quando passei a ter o silêncio como religião. Não é um silêncio magoado, tensionado. É um silêncio cristalino. Fala bem quem não tem pressa, quem saboreia a pausa.

Hoje vivo o impacto da serenidade, com capacidade de improviso, de pensar livremente sem discurso pronto, sem nenhuma cola. Eu aprendi a escrever no ar. Do chão para o vento. Mas sei que aquele garoto fez o possível. Eu perdoo as minhas versões anteriores porque elas fizeram com que eu chegasse aonde cheguei. A lucidez é a soma dos nossos fracassos. Você não conseguiria me enxergar de outro jeito se não tivesse fechado uma porta antes. Passei a me amar mais do que todos. Só que ainda menos do que minha mãe, que eu espero ter orgulhado. Ela tem 85 anos, assim como meu pai, e eles continuam escrevendo. E eu continuo tentando desenvolver a palavra curativa. E abraço. Porque um abraço salva, um abraço cicatriza. E o amor cura.

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