Esposa troféu: como a onda do retrocesso se espalha pelas redes
Multiplicam-se os vídeos de mulheres que glorificam a vida dedicada exclusivamente ao lar ou só a aparecer, toda linda, ao lado do marido
Quando, em meados do século passado, a mulher deixou de ser unicamente dona de casa e integrou-se de vez ao mercado de trabalho, imaginou-se ser este um caminho sem volta, por liberá-las da dependência dos maridos e lhes permitir sentir o gosto inédito da liberdade de escolha. De fato, as mulheres nunca mais foram as mesmas. Mas, em tempos de redes sociais, com sua ânsia inesgotável por novidade e capacidade de agregar simpatizantes de tudo o que é causa, uma onda de retrocesso se pôs em marcha. Embaladas nela, senhoras de todas as idades se propõem a retomar o ideário conjugal dos anos 1950, de dedicação em tempo integral ao marido, aos filhos e aos afazeres domésticos — uma marcha à ré estampada na hashtag #tradwife (esposa tradicional), que conta atualmente com mais de 30 000 publicações. Espelhadas na canadense Cynthia Loewen, uma ex-miss que desistiu da medicina e mantém desde 2019 um canal no YouTube, em que exibe sua rotina de se embonecar, limpar a casa, cozinhar e cuidar dos dois filhos pequenos, tradwives no Brasil e no exterior utilizam os meios digitais para exaltar um modo de vida frequentemente aliado ao discurso de respeito à religião cristã e de submissão à liderança masculina.
A gaúcha Luiza Maciel, de 27 anos, era confeiteira quando decidiu se casar e se dedicar exclusivamente ao lar, no ano passado — um projeto de vida executado por iniciativa dela, diga-se. “Quando começamos nosso relacionamento, eu já sabia que queria ser uma dona de casa. Meu marido, que vem de uma família com valores tradicionais, gostou da ideia”, relata Luiza. “Meu maior sonho era ser mãe, e seguir esse modelo foi conveniente para mim”, acrescenta. A historiadora da Unicamp Gabriela Trevisan chama atenção para um fator incômodo nessa volta ao passado: a tendência a julgar negativamente aquelas que não seguem o mesmo caminho. “O discurso da dona de casa é questionado pela modernidade. Mas a repercussão desses vídeos coloca a opção como algo inquestionável, irrepreensível tanto no âmbito moral quanto no religioso”, alerta.
Uma variação das tradwives tende a glorificar um conceito ainda mais extremo: as trophy wives, esposas bonitas e bem cuidadas cuja única obrigação é fazer boa figura ao lado do marido rico e poderoso. A expressão, que sempre teve caráter pejorativo, comparece devidamente reabilitada em vídeos nas redes sociais, compondo uma hashtag que congrega quase 40 000 publicações. “A popularização das mídias sociais e a cultura dos influenciadores e subcelebridades deram maior visibilidade a casais que exibem um estilo de vida luxuoso e desejado por outras pessoas”, destaca a psicóloga Juliane Callegaro Borsa, da UFRGS. “Essa forma de relacionamento estimula a dinâmica na qual a mulher oferece beleza e juventude e recebe em troca segurança financeira e status social.”
Para a catarinense Iasmyn Bernardes, 27 anos, a decisão de parar de trabalhar e abandonar os estudos se justificou pela necessidade de acompanhar o marido, cantor de música sertaneja que precisou se mudar para Goiânia. Iasmyn encara a nova vida como um investimento em si mesma. “Durante a semana minha rotina é ir para a academia, preparar de vez em quando um jantar e cuidar das nossas redes sociais”, explica. “Foi uma decisão minha ter esse estilo de vida. Se a gente vier a se separar, eu volto a trabalhar. Não me preocupo”, afirma. Esse tipo de discurso é comum entre as esposas assumidamente troféus, que qualificam a escolha como uma forma de empoderamento, quando muitas vezes ela é o oposto disso: desprovidas de recursos financeiros próprios, elas acabam presas a um casamento infeliz por falta de alternativa. “Quem domina o dinheiro tem mais poder na relação, e se o homem mudar de ideia a mulher fica vulnerável, desamparada”, explica Denise Figueiredo, especialista em terapia de casal.
O papel de “esposa troféu”, como se sabe, pode ser complexo. A advogada Iara Sanny deixou a faculdade quando se casou, atrelou sua vida à do marido e se arrependeu. “Passava o tempo cuidando de mim fisicamente e acompanhando ele nos eventos”, conta. Com o tempo, cansou-se do papel e resolveu voltar a estudar, e os desentendimentos se acumularam. “Ele não gostou, mas quando comecei a buscar minha independência, não voltei mais atrás”, diz Iara, que se separou e precisou cuidar sozinha do filho. Como se vê, reverter conquistas pode até ser divertido por um tempo. Mas, a longo prazo, a maioria das mulheres prefere mesmo é ter uma relação de igualdade e respeito mútuo dentro de casa.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905