Espartilho volta repaginado, e com uma mensagem totalmente diferente
Conhecido como símbolo de opressão às mulheres, ele passa a representar, em vez de submissão, poder
Em uma das cenas mais celebradas do clássico …E o Vento Levou, de 1939, a protagonista, Scarlett O’Hara (vivida pela atriz Vivien Leigh), aparece incomodada enquanto uma escrava aperta os fios do espartilho que usará por baixo de um vestido de baile. É reação semelhante que salta de um instante conhecido de Titanic, de 1997: Rose (interpretada por Kate Winslet) faz cara feia, de protesto, à medida que sua mãe desconta a raiva que sente pela rebeldia da filha nas puxadas do corset. Ao longo da história, iluminada com inteligência pelo cinema, a peça, de uso compulsório para mulheres que não podiam escapar dos padrões estéticos vigentes, foi sinônimo de opressão física e social ao comprimir o tórax.
Dá-se, agora, uma interessante revolução. O espartilho voltou, mas de modo revisitado. É a um só tempo sexy e ruidoso, como grito de liberdade feminina. Simples assim: as mulheres, se quiserem, vestem as peças — ainda que ligeiramente folgadas — porque elas conferem silhueta mais delgada. E da opressão fez-se um jeito de corpo. “O espartilho cria uma feminilidade artificial. Dessa forma, quem quer se sentir feminina pode simplesmente colocá-lo”, diz a estilista americana Batsheva Hay. “O que é mais libertador do que isso?”
Os corsets atuais são muito diferentes dos modelos do passado, feitos de barbatanas de baleia, cordas, ferro — sim, ferro! — e madeira. Eles estão ressurgindo em tecidos maleáveis. Bebem elegantemente de dois movimentos históricos da moda. O primeiro ocorreu em 1947, quando o estilista francês Christian Dior trouxe a peça à tona por meio de roupas estruturadas, a que se deu o nome de New Look. Ainda havia o visual de mulher recatada, porém não mais oprimida. Depois, o espartilho viraria item do feminismo na década de 80 pelas mãos de criadores como Vivienne Westwood, Christian Lacroix, Thierry Mugler, Azzedine Alaïa e Jean Paul Gaultier. É de Gaultier, aliás, o corset de cetim rosa e seios cônicos usado por Madonna em 1989 na turnê Blond Ambition.
Tudo somado, numa aventura que começou como ícone de submissão e foi arrebentando as algemas, chegamos aos dias de hoje com pegada um tanto irônica: o espartilho, afeito a conter os corpos, pode servir a seu avesso, sinônimo de emancipação. Agora em 2022, depois da quarentena compulsória imposta pela pandemia, a hashtag #corset apareceu nas redes sociais em mais de 44 bilhões de citações. Explodiu também nas passarelas. Grifes como Fendi e Dolce & Gabbana, além da Dior, exibiram com estardalhaço modelos sensuais. Famosos ajudaram a fazer crescer a onda. A cantora Billie Eilish já desfilou com um majestoso corset da Gucci. Jennifer Lopez exibiu o seu espartilho, de couro preto, da grife Mônot. E Anitta, sempre ela, não deixa de apertar a cintura. Parece caminho sem volta — e o que era aprisionamento do passado é manifesto de um tempo de mudanças, porque moda é política, é cultura.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814