Elegância provocadora: o terno e a gravata foram capturados em definitivo pelas mulheres
Evidentes símbolos de masculinidade, eles se tornam manifesto de autonomia em um novo desafio aos velhos tabus

Uma enorme expectativa tomou conta do mundo da moda em torno do desfile de verão 2025 da grife Yves Saint Laurent, em meados de 2024, nas passarelas parisienses: o retorno da supermodelo americana Bella Hadid após um hiato de dois anos. Para alimentar a ansiedade houve o misterioso spoiler dado por Anthony Vaccarello, diretor criativo da marca, poucas horas antes do espetáculo: “Roupas, sim, mas não como de costume”.
A surpresa foi grande: Bella surgiu literalmente à semelhança do estilista que deu nome à companhia: de terno preto oversized, camisa branca, gravata preta fina e calças largas. Até o cabelo penteado para trás, o rosto quase sem maquiagem e os óculos pretos de aros grossos remetiam ao fundador da maison. Era uma ode à YSL, sem dúvida, mas serviu também como senha, o abre-te sésamo de uma tendência inescapável, por forte, que explodiu.
Olhe para o lado, em festas ou mesmo no dia a dia de quem sabe o que veste: os cortes masculinos em corpos femininos se espalharam em capas de revista, lojas e ruas das grandes metrópoles do mundo. O terno e a gravata deles caíram como luva nelas. “É a imagem da feminilidade empoderada, sinônimo de força e sensualidade, mas sem rigidez”, afirma a estilista australiana Effie Kats. Não demorou para a faísca de Bella Hadid acender outros pavios.
A modelo Hailey Bieber, também a serviço da YSL de Vaccarello, despontou outro dia mesmo como um belo homem. Nicole Kidman, idem, envolta em um tom bege na premiação Critics Choice, em evidente e nada sutil referência a seu papel de CEO faminta de desejo em Babygirl. Agora em maio, Demi Moore, com lindíssimo costume all black, deu o que falar, como quem avisa ainda estar aqui, na ribalta iluminada. A primeira-dama dos Estados Unidos, Melania Trump, apareceu de terno caramelo e gravata preta da Ralph Lauren em uma reunião com parlamentares. A possibilidade de recado: seria uma crítica velada ao ucraniano Volodymyr Zelensky, que só usa camiseta, e assim esteve na Casa Branca.

Uma pergunta não quer calar: por que, afinal, as mulheres vão de terno e gravata, peças que quase sempre foram identificadas com o mundo da testosterona, como símbolo de elegância, de dinheiro e de status (leia mais na reportagem sobre mulheres no mercado de trabalho, na pág. 64)? Trata-se, a rigor, de um grito, um manifesto em forma de protesto sem violência. “As mulheres querem desafiar as normas de vestimenta tradicionalmente associadas ao gênero”, diz o stylist Dudu Farias, que cuida do visual de modelos como Renata Kuerten, também adepta da onda. É um modo de pedir igualdade, de quebrar as fronteiras, em estrada bonita e longa, trilhada outras vezes na história da moda, de mãos dadas com as mudanças do mundo.
Celebre-se, no túnel do tempo, o estrondo de Marlene Dietrich, que, na década de 1930, causou necessário ruído ao vestir costume masculino no filme Marrocos. Ela escandalizou o público que foi aos cinemas e, a bordo de uma viagem transatlântica que saiu de Nova York a caminho de Paris, chegou a ser ameaçada de prisão por quebra de pudor. A mítica intérprete desafiou as autoridades francesas, caminhando pelas ruas de paralelepípedos da capital, sapatos firmes no chão, o corpo emoldurado como o de seus companheiros de tela e de vida.
Marlene inspirou Saint Laurent, sempre ele, sempre na vanguarda, a desenhar em 1966 uma obra-prima de linha e linho, o Le Smoking. A cantora Françoise Hardy, uma das musas de uma década de transformações, foi vaiada ao usá-lo na Ópera de Paris. Dada a repercussão, alguns restaurantes e hotéis de luxo trataram de proibir a entrada de gente daquele modo, digamos assim, como se fosse ainda tempo de trevas da Idade Média, porque, segundo jornais conservadores, “uma mulher vestindo um terno é tudo menos feminina”, em tolice que deveria estar presa no armário, sobretudo em um momento em que se queimavam sutiãs, no auge da Revolução Sexual.
É inacreditável imaginar, enfim, que, nos anos 1960, a ideia tenha provocado tanto ruído — e ainda agora produza algum tipo de perplexidade, porque as mulheres de terno sabem estar alimentando ruído. Os tempos mudaram, os tecidos mais leves permitem brincadeiras, dá-se uma profusão de cores e caimentos. Mas a história ainda não terminou, e o jeito masculino em corpos femininos tem ainda um quê de tabu, que existem para ser quebrados. Por óbvio, estrelas de cinema e dos estúdios de fotografia vestem-se desse modo por saberem chamar a atenção e porque querem dizer algo. Note-se, contudo, em bom movimento, que a retomada do trabalho presencial, depois da quarentena da pandemia, autorizou gente comum voltar para os escritórios do jeito que o diabo gosta. A ideia é marcar um corte temporal: se antes havia nítida diferença de estilo entre eles e elas, por que não dar uma embaralhada? Uma garota, afinal, como definiu Coco Chanel, deve ser duas coisas: quem e o que ela quiser.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945