Ícone do surrealismo, o pintor Salvador Dalí (1904-1989) dizia que a confusão tinha de ser criada sistematicamente, já que serve de motor à criatividade. “Tudo o que é contraditório cria vida”, pregava o espanhol, que pontuava sua obra com imagens bizarras e toques oníricos. São palavras que podem não significar muito para a ala da humanidade mais afeita à estabilidade das regras da elegância, mas acendem a imaginação de mentes inquietas como a da estilista italiana Elsa Schiaparelli — não por acaso, uma das melhores amigas de Dalí. No cinquentenário de sua morte, a irreverência de seus desenhos ganham fôlego renovado, influenciando designers e celebridades planeta afora e batendo de frente com a escola mais sóbria de sua grande rival, a francesa Coco Chanel.
Envolta na estética surreal, Schiaparelli firmaria uma parceria com o próprio Dalí, decisiva para sua carreira e legado. Junto ao pintor, ela assinou obras lendárias, como o vestido-esqueleto, o chapéu com formato de sapato, a bolsa-telefone e o rebelde modelito com estampa de lagosta, exibido sob holofotes por ninguém menos que a então Duquesa de Windsor, Wallis Simpson, a mulher que fez o rei Eduardo VIII abdicar do trono britânico. Controvérsias assim eram expressão da postura inquieta de Schiap, como era conhecida, antes mesmo de se embrenhar no mundo da moda.
Nascida em Roma, em 1890, a estilista veio de uma família intelectual com raízes aristocráticas. Com personalidade forte, estudou filosofia e, aos 21 anos, após publicar poemas eróticos inspirados na ninfa grega Aretusa, escandalizou os pais, que a despacharam para um convento na Suíça, de onde fugiu depois de uma greve de fome. Foi para Londres, onde conheceu o teosofista William Wendt de Kerlor, com quem se casou e se mudou para Nova York. No navio, fez amizade com Gabrièle Picabia, mulher do pintor francês Francis Picabia, que a apresentou a outros artistas de renome. Em 1922, separada e com uma filha pequena, Schiaparelli regressou à Europa, aterrissando em Paris, onde encontrou Paul Poiret, o imperador da moda na década de 1920. Era a faísca que faltava para a italiana adentrar o universo fashion.
Visionária e autodidata, passou a desenhar roupas com olhar artístico, muitas vezes com tons ou contornos que se despregavam do esperado. “Ela era uma vanguardista”, afirma a consultora de moda e comportamento Gloria Kalil. Sem receio de espantar ou incomodar, foi incorporando o surrealismo à alta-costura, movimento que lhe trouxe colaborações de peso, como as com Jean Cocteau, Alberto Giacometti e o próprio Dalí. Concebeu designs inovadores, como o primeiro pulôver em trompe-l’oeil, técnica que gera ilusões de óptica, e peças inéditas adornadas por zíper, metal e plástico, que atraíam estrelas do cinema do porte de Marlene Dietrich e Katharine Hepburn.
Outra contribuição atribuída a Schiaparelli é a invenção do rosa-choque, cor com a qual cobriu o frasco do perfume Shocking — o formato, dizia, era inspirado no corpo da atriz Mae West. Tantas ousadias a levaram à capa da revista Time, em 1934, e a colocaram em rota de colisão com Coco Chanel, que a chamava de “aquela italiana que faz roupas”. Schiap, por sua vez, disparava que Chanel era “uma chapeleira que se levava muito a sério”. “Havia uma rivalidade para além da profissão, quase que uma disputa de classes”, define Gloria, explicando por que a francesa levou vantagem. “Ela inventou peças que funcionam até hoje, como o pretinho básico, e conquistou popularidade, enquanto Schiaparelli era exótica demais.” Sua intenção era mesmo chocar, muito mais do que vender.
As peças da marca que levam seu nome, atualmente sob a assinatura do americano Daniel Roseberry, seguem a mesma toada — entre elas, o polêmico vestido com a cabeça de leão usado por Kylie Jenner no desfile da grife no começo do ano. Não é por menos que o atual fã-clube de Schiaparelli atrai contestadoras em busca de palco como Lady Gaga, que elegeu um modelo preto e rosa-choque para a posse do presidente Joe Biden, e Anitta, que desfila a grife em tapetes internacionais. Nos cinquenta anos da morte de Elsa Schiaparelli, em 13 de novembro de 1973, está claro que ela extrapolou o rótulo de “rival da Chanel”. Trata-se, na verdade, de nome incontornável na história da moda, tendo influenciado outros gigantes, como Hubert de Givenchy e Yves Saint Laurent, e ainda hoje revelando vigor para sacudir o guarda-roupa. Afinal, como ela mesma gostava de dizer: “Em tempos difíceis, a moda é sempre ultrajante”.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867