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É possível dialogar com os negacionistas e levá-los à razão, dizem estudos

Uma leva de novas pesquisas está chacoalhando a crença generalizada de que é inviável mudar a cabeça das pessoas com ideias fixas

Por Ricardo Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 12h12 - Publicado em 22 abr 2022, 06h00

Já dizia o filósofo francês René Descartes (1596-1650), figura de destaque no Iluminismo, o movimento intelectual do século XVII que propunha a disseminação do conhecimento como contraponto aos dogmas religiosos em vigor: “Nada no mundo é mais justamente distribuído do que a razão — todas as pessoas estão convencidas de que a têm de sobra”. Quem não passou os últimos anos isolado em Marte pode comprovar amplamente a veracidade da afirmação nas discussões inflamadas e infrutíferas confrontando defensores e negadores da ciência em temas envolvendo eficácia de vacina, necessidade de lockdown, riscos do aquecimento global, teorias conspiratórias variadas e até o formato do planeta Terra, uma “polêmica” que se julgava morta e enterrada. O debate — se é que o bate-boca merece esse nome — se torna mais radical quando migra para o campo da política, minado de fake news. Tolhida pela convicção de que tentar iluminar com a razão a escuridão das teses negacionistas é desperdício de tempo e só põe mais lenha na fogueira, muita gente de bom senso opta por fica muda.

Uma leva de novos estudos e pesquisas, no entanto, está chacoalhando a crença generalizada de que é impossível mudar a cabeça das pessoas com ideias fixas fundamentadas na má informação. Em artigo recente publicado na Nature, respeitada revista de divulgação científica, o filósofo americano Lee McIntyre demonstra, a partir de um sólido conjunto de análises, que argumentos calcados na verdade e em fatos comprovados podem, sim, abalar e demolir falsos postulados. Desde que, claro, apresentados de forma serena e convincente, em uma conversa em que se firma um elo respeitoso. “A boa notícia é que a refutação baseada em evidências concretas, feita de maneira correta, é capaz de convencer as pessoas de que suas convicções estão simplesmente erradas”, disse McIntyre a VEJA.

AMEAÇA - Protesto contra a vacina em São Paulo: o direito à liberdade de alguns pode vir a ser fatal para outros -
AMEAÇA - Protesto contra a vacina em São Paulo: o direito à liberdade de alguns pode vir a ser fatal para outros – (Roberto Casimiro/Fotoarena/.)

Filósofos, psicólogos e linguistas, entre outros estudiosos, têm se dedicado nos últimos tempos a deslindar o funcionamento dos mecanismos da desinformação e do negacionismo, duas pragas sempre presentes nas sociedades, mas que ganharam impulso extraordinário no século XXI, insufladas pelo vendaval das redes sociais. Acreditar em falsidades é da condição humana: a neurociência mostra que a propensão a confiar é muito mais forte do que a de desconfiar. Mesmo assim, segundo a compreensão mais atual, a crença em falácias não é inflexível e vale a pena, sim, tentar mudá-la.

Uma gama de experimentos tocados por reputados cientistas enfatiza a ideia de que a aposta na razão tende a compensar. A Universidade de Erfurt, na Alemanha, conduziu uma pesquisa na qual, em seis painéis sobre vacinação e aquecimento global — temas fortemente impactados pelo avanço científico —, diferentes grupos escutaram a opinião ou só de negacionistas, ou de negacionistas em pleno embate de ideias com especialistas. No final, os participantes foram instados a dizer que atitude adotariam. Uma parcela seguiu fincando pé em velhos pensamentos sem lastro nos fatos, mas os que abriram os ouvidos aos contra-argumentos científicos se revelaram propensos a aceitar a imunização, a temer as mudanças climáticas e a agir.

MANIPULAÇÃO - Cena de Não Olhe para Cima: o uso de fake news inspirado na Casa Branca de Trump -
MANIPULAÇÃO - Cena de Não Olhe para Cima: o uso de fake news inspirado na Casa Branca de Trump – (Niko Tavernise/Netflix)
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Em sua lógica peculiar, os negacionistas argumentam que têm o direito de acreditar no que bem entendem e que toda opinião deve ser democraticamente respeitada, sem levar em conta que essa atitude pode afetar a sociedade à sua volta. A vacina contra Covid-19 é exemplar — não tomá-la significa pôr em risco as outras pessoas. Combater a negação, porém, requer mais do que desfiar argumentos científicos, ensina a antropóloga americana Heidi Larson, que mergulhou em um assunto mais do que oportuno: a origem e o desenvolvimento dos boatos sobre vacinas. Para ela, toda campanha de imunização deveria ser precedida de um vasto trabalho para assegurar a confiança da população no produto e nos órgãos responsáveis por sua aplicação. “A rede de confiança é muito mais relevante, em termos de aceitação, do que qualquer informação científica”, afirma ela, que acredita que “a ciência precisa entender o público”. Larson criou um Índice de Confiança em Vacinas, segundo o qual, dos dez países que mais duvidam delas, sete estão na Europa, sendo a França a campeã — sinal inequívoco de que o negacionismo independe do tamanho do PIB das nações.

Colocada nesse contexto, tor­na-se ainda mais premente a necessidade de abrir os olhos de quem insiste em divulgar falsidades. O especialista McIntyre, professor da Universidade de Boston e autor do livro Como Conversar com Um Negacionista, ainda sem tradução no Brasil, recomenda o uso de técnicas comprovadamente eficientes de argumentação e persuasão. A primeira, e talvez a mais importante, é estabelecer uma relação de confiança com o interlocutor: não ridicularizar, não ser irônico e mostrar genuíno interesse pelo que ele tem a dizer, por mais esdrúxulo que possa parecer. Uma vez criado o elo, o ato seguinte é beber da sabedoria de Sócrates e seu “Só sei que nada sei” — um exercício de reconhecimento da própria ignorância para buscar respostas e construir conhecimento —, engatando uma série de perguntas que ponham em xeque as certezas do outro.

BATALHA VERBAL - Aos 29 anos, Beatriz Trindade quer convencer o pai e os irmãos a não se deixar levar por notícias “falsas, absurdas”. A situação chegou ao extremo quando perdeu uma prima, vítima de Covid-19: “Até o final, ela não acreditava na seriedade do vírus”. -
BATALHA VERBAL – Aos 29 anos, Beatriz Trindade quer convencer o pai e os irmãos a não se deixar levar por notícias “falsas, absurdas”. A situação chegou ao extremo quando perdeu uma prima, vítima de Covid-19: “Até o final, ela não acreditava na seriedade do vírus”. – (./Arquivo pessoal)

No decorrer de um diálogo montado dessa forma, informações e dados corretos vão solapando as notícias falsas com naturalidade, sem a raiva e o ressentimento que costumam dar o tom dessas conversas. Por fim, se houver plateia, vale expor ao negacionista seus recorrentes artifícios para fundamentar inverdades — por exemplo, o conhecido costume de pescar apenas evidências que se encaixem em suas teorias, deixando o resto (às vezes, o mais importante) de fora. Lançando mão desses recursos, médicos da Universidade de Sherbrooke, no Canadá, passaram a se oferecer para uma conversa presencial de não mais que vinte minutos com os pais de cada recém-­nascido no hospital universitário com o propósito específico de esclarecer suas dúvidas sobre vacinação. Deu certo: quem aceitou o convite saiu do papo inclinado a vacinar os filhos, vencendo a resistência de muitos adultos a aplicar esses imunizantes em crianças.

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Se a resposta ao negacionismo, para ser eficiente, deve seguir um certo encadeamento de argumentação, a disseminação de fake news também tem lá suas fórmulas. Um fator decisivo da engrenagem que impulsiona as inverdades é a atração das pessoas por falsos especialistas e teorias da conspiração — aquelas narrativas recheadas de inconsistências que enxergam complôs maléficos em toda parte. Cultivam-se aí teses tão sem noção que quem está de fora perde a paciência — e cria-se um abismo intransponível entre parentes, entre amigos, entre colegas de trabalho. A especialista em marketing Beatriz Trindade, 29 anos, não se conforma com o hábito da família de compartilhar notícias “falsas, absurdas” no WhatsApp. “Tudo o que confronta suas ideias dizem que é mentira, invenção ou manipulação”, critica. Beatriz foi expulsa do grupo, brigou com o pai (depois fizeram as pazes) e não esconde o ressentimento. “Perdi uma prima para a Covid que até o final não acreditava na seriedade do vírus”, lembra.

O raciocínio do negacionista prescinde, na maioria das vezes, de qualquer lógica, ancorando-se na distorção de fatos para reforçar ideias. Um de seus argumentos mais repetidos é que a ciência não é capaz de provar com 100% de certeza o que afirma. À luz da razão, porém, isso não diminui em nada a veracidade dos fatos, mas justamente o contrário. A busca da verdade científica é feita da construção e da refutação de hipóteses, um pensamento complexo pelo qual a turma da negação passa ao largo.

NEGAÇÃO E POLÍTICA - A pressão que fez Galileu (à esq.) se retratar do que sabia ser verdade e as tentativas de absolver Hitler são efeitos da mistura tóxica de ideologia com desinformação. -
NEGAÇÃO E POLÍTICA – A pressão que fez Galileu (à esq.) se retratar do que sabia ser verdade e as tentativas de absolver Hitler são efeitos da mistura tóxica de ideologia com desinformação. – (Wellcome Library; Mondadori/Getty Images)

Conhecer melhor os meandros da desinformação contribui, sem dúvida, para combatê-la. Mas desmontar a armadilha que os negacionistas implantaram em suas próprias mentes, assistindo a horas de vídeos produzidos por lunáticos no YouTube ou interagindo diretamente com eles em fóruns de discussão no Facebook ou no WhatsApp, leva tempo e requer paciência. Aparição inesperada em uma convenção de terraplanistas, o filósofo McIntyre conta que, em vez de discutir, optou por confrontar os presentes com a pergunta “O que faria você mudar de opinião?”. Ele aproveitou, na ocasião, as respostas da plateia para balançar suas certezas. “Assim consegui fazer com que aquelas pessoas questionassem suas crenças. É um começo”, explica.

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No universo da desinformação, atenção especial tem de ser dada aos discursos políticos baseados em falsidades, prática infelizmente comum em palanques. Um exemplo já clássico que reverberou em escala global veio depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando o governo de Geor­ge W. Bush espalhou aos quatro cantos que o Iraque tinha um arsenal de armas de destruição em massa para justificar a invasão do país. Donald Trump, na Casa Branca, revelou-se um mestre na manipulação de notícias falsas, sobretudo em tempos de eleição, no que tem sido seguido por seus discípulos populistas mundo afora. De tão recorrente, o artifício chegou ao cinema: em Não Olhe para Cima, a cínica presidente vivida por Meryl Streep (e inspirada em conhecido topete) manipula dados e abafa a notícia de que um asteroide está prestes a destruir o planeta. Muita gente só vem a acreditar mesmo na catástrofe quando o corpo celeste está por um triz de colidir com o globo.

É possível, sim, desmontar narrativas mentirosas também no contexto político, embora, conforme demonstrou um estudo realizado pela Universidade de Bristol, no Reino Unido, o efeito do esclarecimento seja temporário (o que absolutamente não o invalida) e não interfira tanto na decisão do eleitor. Isso acontece porque a fidelidade ideológica desencadeia no cérebro humano o que a neurociência chama de “viés de confirmação”. “As pessoas preferem acreditar naquilo que está alinhado com sua visão política e de mundo, o que não significa que não podem mudar”, diz Stephan Lewandowsky, professor de psicologia e um dos autores do estudo. O aluno de direito Felipe Matos, 24 anos, nascido em família conservadora, passou anos abraçando a tese da extrema direita de que uma conspiração globalista quer enterrar os valores da família tradicional. Conversando com amigos e professores, abriu-se a outras interpretações, mas foi um duro processo. “Quem é extremista, independentemente do lado político, não percebe que suas ideias são insustentáveis e fica preso em um ciclo de ignorância”, reconhece.

METAMORFOSE - O estudante Felipe Matos, 24 anos, confessa que acreditava em “uma conspiração globalista” para aniquilar valores tradicionais. A argumentação de amigos e professores o fez mudar de ideia. “Os radicais alimentam um ciclo de ignorância”, afirma. -
METAMORFOSE – O estudante Felipe Matos, 24 anos, confessa que acreditava em “uma conspiração globalista” para aniquilar valores tradicionais. A argumentação de amigos e professores o fez mudar de ideia. “Os radicais alimentam um ciclo de ignorância”, afirma. – (./Arquivo pessoal)

De tempos em tempos, uma conjunção de fatores favorece a proliferação do negacionismo, como agora. São, em geral, momentos de medo e desconfiança, quando os pilares que sustentam a sociedade parecem tremer. A polarização que se percebe hoje nas democracias ocidentais reflete esta tendência: os algoritmos das redes sociais, o anonimato da internet e o ativismo de sofá, retratos destes tempos, isolam os grupos ideológicos, prejudicando o debate franco e honesto. Uma pesquisa com 5 000 pessoas de cinco países realizada pelo Dialogue Project, com apoio da Universidade do Sul da Califórnia, pôs o Brasil no topo do ranking da intolerância política: 64% dos brasileiros disseram ter dificuldade em dialogar com gente de posição oposta, à frente de Estados Unidos (57%), Índia (49%), Reino Unido (28%) e Alemanha (26%). Em compensação, outro levantamento, esse do Instituto Locomotiva, mostrou que apenas um terço da população tem opinião formada sobre casamento gay, aborto, porte de armas, violência policial e racismo, os temas mais propícios a inflamar os ânimos.

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Eis aí um caminho promissor para a boa argumentação começar. A maioria está aberta a pontos de convergência, mas sua voz é abafada pela gritaria dos extremos. “O fatalismo é o maior reforço dessa realidade. Não podemos aceitar que as coisas sejam assim e pronto”, diz Rafael Poço, idealizador do projeto Despolarize, que atua para reduzir a distância entre os dois lados. “Muitas pessoas interagem apenas com quem pensa como elas e isso forma uma câmara de eco, onde as mesmas ideias são repetidas infinitamente”, diz Lúcio Rennó, cientista político da UNB. “Neste ambiente, a capacidade crítica diminui.”

Ao longo da história, negacionismo e política sempre se misturaram, com os esperados efeitos deletérios. Galileu Galilei (1564-1642) colocou o Sol no centro do sistema solar, enfrentou a ira da Igreja Católica (uma potência política na época) e foi obrigado a se retratar. O próprio termo negacionismo foi criado pelo historiador Henry Rousso no livro A República de Vichy, sobre a ocupação nazista na França, para se referir ao revisionismo da perseguição e genocídio de judeus durante a II Guerra — até hoje há quem apele para “fatos alternativos”, um sinônimo de mentira deslavada, com o intuito de absolver Adolf Hitler. Agora é a resistência à vacina que vem demonstrar como a ausência da razão pode resultar em uma ameaça à sociedade em geral. É em tempos marcados por medo, bullying e rancor que mais se faz necessária a coragem de enfrentar quem escamoteia os fatos e assegurar que a verdade prevaleça. Dá trabalho, mas vale a pena. A civilização agradece.

Com reportagem de Duda Monteiro de Barros

Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786

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