Documentário ilumina carreira de quarteto fantástico de supermodelos
Nos anos 1980 e 1990, elas inventaram um novo mundo mais diverso e menos preconceituoso
Foi outro dia mesmo, na virada dos anos 1980 e 1990 do século passado, mas parece ter acontecido na pré-história, antes de a civilização debruçar-se em telas de smartphones. O documentário As Supermodelos, dividido em quatro capítulos, com estreia prevista para 20 de setembro no Apple TV+, passeia ao redor das fulgurantes carreiras de Linda Evangelista, Christy Turlington, Naomi Campbell e Cindy Crawford, o quarteto fantástico das passarelas. Um modo de acompanhá-lo é pela régua tradicional, o da natural passagem dos anos, implacável, insidioso, porque o avançar da idade é tão certo quanto o nascer do sol amanhã cedo, e todo mundo envelhece, mesmo elas, acredite.
Mas há uma outra maneira de medir a relevância da produção do streaming: ela revela — ao cotejar os dois momentos, o de agora e o de antes — as fenomenais mudanças de comportamento pelas quais o mundo atravessou nas últimas décadas, a caminho do respeito à diversidade. Não por acaso, a capa da revista Vogue de setembro, tanto na edição americana quanto na britânica, foi severamente criticada por ter aplicado camadas de Photoshop nas quatro mulheres. Segundo uma porta-voz da publicação, houve apenas “retoques mínimos” nas fotografias. Contudo, na era das redes sociais, em que o limite entre o virtual e o real é tão tênue, banhado de notícias falsas, a definição de “mínimo” é relativa. Era preciso voltar o tempo artificialmente para Linda (58 anos), Cindy (57), Naomi (53) e Christy (54)? Lá atrás, sim, era a regra do jogo. Hoje, não, porque o etarismo deve ser abandonado, por inaceitável. Trata-se, enfim, quase de uma viagem antropológica. Ou, na trilha do genial aforismo do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), “haja hoje para tanto ontem”.
É fascinante, a partir de um olhar retroativo, acompanhar o crescimento das quatro mulheres — e como elas ajudaram a derrotar as ideias preconcebidas, como a de que deveriam ser meros cabides, e não seres humanos. A turma mostrou que havia uma outra estrada que os humores da sociedade começavam a pavimentar. “As supermodelos mostraram para a indústria que não bastava ser linda”, diz Anderson Baumgartner, fundador da agência Way, que descobriu Alessandra Ambrosio e Caroline Trentini. “Precisavam saber falar em público, com inteligência e algo a dizer.” Soa óbvio, mas não. Foi um grande passo para a humanidade, e que mudanças provocou. “Não éramos os Beatles”, diz Linda Evangelista, com boa dose de falsa modéstia. Onipresentes — e recorde-se o videoclipe de Freedom! ‘90, de George Michael, estrelado pelas quatro — para ter ideia do barulho.
Havia, especialmente no jeito de corpo de Naomi, ideias transformadoras. Ela foi a primeira modelo negra a ter algum destaque e a primeiríssima a protestar contra o racismo. “Fazia todos os desfiles, mas, quando vinham as propagandas, não era incluída”, lembra. “Nós ajudamos a quebrar barreiras”, completa Linda. Não há dúvida desse poder, mas é engano imaginar que a bandeira desfraldada pelas quatro tenha oxigenado tudo e todos de modo definitivo. A própria Linda, pressionada pelo padrão imposto pela indústria de beleza — alta, magra, de olhos claros, lábios carnudos e curvas perfeitas —, se submeteu há sete anos a um procedimento estético que fracassou, a ponto de deixar seu rosto deformado, obrigando seu afastamento das lentes dos fotógrafos. Ela não precisaria ter feito a cirurgia, mas seguiu o sopro ao redor, e pronto. “Há muito ainda a melhorar do ponto de vista das atividades profissionais de mulheres bonitas, mas há evidente caminho positivo”, diz Baumgartner. É o que salta dos agradáveis, ainda que um tanto nostálgicos e melancólicos, minutos de As Supermodelos.
Talvez caiba, passadas as décadas, relembrar a frase mítica de Linda que lá atrás soou irônica e que agora pode ser entendida como manifesto inaugural das ondas de empoderamento feminino que se sucederiam: “Não saio da cama por menos de 10 000 dólares”, disse no início dos anos 1990. E então começou a sair por muito mais, ao abrir as portas para modelos plus size, transgênero, negras, mais velhas etc., como deve ser. Ou, como gritou George Michael no clipe inesquecível e viciante, com toda a exclamação possível: “Liberdade! Liberdade!”.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859