De peito aberto: os decotes ganham contornos inéditos na moda
Símbolos máximos de sedução, eles se reafirmam como a principal tendência de valorização do corpo feminino — um convite à libertação, mas também à inclusão
Uau! Aquele zíper infindável, do colo aos pés, provocou ondas de euforia ao emoldurar o corpo da atriz Zendaya, a estrela de Euphoria, na fila do gargarejo do desfile da Louis Vuitton na Semana de Moda de Paris. Era ela se levantar e os cliques das máquinas fotográficas ecoavam pelo salão. Dali para o TikTok foi um pulo, com mais de 2 milhões de postagens atreladas à hashtag #deepcleavage (decote profundo). O resultado veremos no verão brasileiro, de canícula anunciada com estardalhaço, tempo de mostrar e não esconder.
Ícone de sensualidade, explorado à exaustão por filmes e anúncios publicitários — muitas vezes, com mau gosto renitente —, o decote ganha agora contornos inéditos. Vem festejar a liberdade, mas também a inclusão. Em 2023, decote é para todas (e todos) — funciona como um grito de guerra, ou melhor, de paz. As celebridades já estão de peito aberto. Como nota irônica, a cantora Anitta e a modelo Kylie Jenner despontaram com cortes amplos e o formato de uma fechadura entre os seios (veja abaixo), como quem anuncia a sagrada inviolabilidade, a não ser para quem tem o código de abertura.
Eis a ideia: virar a chave de vez para que as mulheres, independentemente de corpo, cor de pele e classe social, possam usar o que quiserem — e do jeito que quiserem — sem atrair a estupidez machista. “Os decotes diferentes são formas criativas de deixá-las mais bonitas, mas também mais confiantes”, diz o estilista Reinaldo Lourenço. “Os desfiles de Paris abandonaram o pudor”, reforça. As grifes abraçaram a ideia, cavando a fundo os desenhos dos modelos da Chanel, Mugler e Zimmermann, entre tantas outras marcas. É tendência que ultrapassa mesmo quem não está, por ora, nas passarelas. Gisele Bündchen, sempre ela, deu um jeito de iluminar fendas e recortes estratégicos.
Para chegar a esse conceito libertador, de tirar o fôlego, convém fazer um passeio histórico e sinuoso. A inovação no vestuário teria surgido na Grécia Antiga, a fim de facilitar a amamentação. No entanto, foi só na França do século XVIII, antes de as guilhotinas descerem, que os decotes apareceram em trajes suntuosos, valorizando (e muito!) os seios, como se constata nos retratos da rainha consorte Maria Antonieta e das damas da corte do rei Luís XVI. Ao longo do tempo, em eterno zigue-zague, eles foram de insígnia de riqueza, status e posição social, como o cleavage em forma de coração que evidenciava as joias usadas pela Rainha Elizabeth II em sua coroação, em 1953, a artifícios sensuais para atrair olhares masculinos, eternizados em Hollywood por estrelas como Rita Hayworth e seu “tomara que caia” de Gilda (1946) e Marilyn Monroe com sua famosa frente única em O Pecado Mora ao Lado (1955).
Na década de 1990, o que um dia foi considerado sexy ou até provocativo demais, passou, enfim, a ser revestido de uma aura de empoderamento feminino. Símbolos fashion da época, como a princesa Diana, usaram e abusaram do recurso em um misto de estilo e manifesto. O ápice foi, sem dúvida, seu “vestido da vingança”, em que ela ostentou um decote de ombro a ombro na Serpentine Gallery de Londres, em 1994, e roubou a cena e as primeiras páginas dos jornais, maneira de provocar o ex-marido, o então príncipe de Gales, que no mesmo dia havia admitido a traição com Camilla Parker Bowles em um programa de TV. A luta pelos direitos iguais, a despeito de gênero e origem, e a história de mulheres fortes que não abriam mão da pele à mostra — a exemplo de Julia Roberts e seu longo vermelho em Uma Linda Mulher (1990) e Demi Moore em seu preto gótico de Proposta Indecente (1993) — imortalizaram os decotes em nova roupagem no imaginário ocidental.
E agora? No mundo das redes sociais, de smartphones como espelhos, bebem do passado, salpicam doses de provocação com seios siliconados — e quem não? — para deixar clara a mensagem que antes era apenas levemente insinuada: adeus ao fetiche, adeus à mulher-objeto. Magrelas ou gordinhas, jovens ou maduras, o corpo fala — e as mulheres estão de peito aberto à ideia.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863