Contra excesso de turistas, Veneza vai passar a cobrar taxa de visitantes
Cidade italiana será a primeira a aplicar a medida, que pode ser adotada por outros destinos para combater o 'overtourism'
Durante as festividades da Páscoa, quase meio milhão de visitantes se amontoaram pela Praça de San Marco, pela Ponte de Rialto ou nos inesquecíveis passeios de gôndolas, em busca da selfie perfeita para eternizar a passagem por Veneza. A Sereníssima, como é conhecida a cidade italiana de 1 600 anos, famosa por sua arquitetura flutuante e por festivais artísticos, segue sendo um dos destinos mais badalados do planeta. O trânsito de pessoas em seus cenários cinematográficos — palco de filmes como Morte em Veneza (1971) e 007 — Cassino Royale (2006) —, porém, vem se tornando alvo de controvérsia. O alto fluxo de turistas poderia ser motivo de comemoração pela retomada da economia, mas, na verdade, reacendeu um debate sobre os efeitos nocivos do overtourism, como é definida a superlotação de um local sem estrutura para suportá-la. O turismo em excesso, exacerbado pela popularização de empresas aéreas de baixo custo e por sites de hospedagem on-line, tem uma série de efeitos colaterais. Enquanto os viajantes se acotovelam em filas, moradores padecem com a demanda por transporte público e a inflação de aluguel e comida. Há ainda impactos ambientais preocupantes.
Tão bela quanto frágil, a capital da região do Vêneto vem sofrendo um processo galopante de despovoamento. Seu número de residentes caiu pela metade em quatro décadas — está em 50 000, um morador para cada 590 turistas por ano. O drama é real e levou o prefeito Luigi Brugnaro a desengavetar medidas drásticas. A partir de junho, no início do verão, Veneza fará os primeiros testes de um sistema de reserva para entrada em seu centro histórico. Inicialmente, o cadastramento será gratuito. A partir de 2023 serão aplicadas taxas entre 3 e 10 euros (até 52 reais), dependendo do número de pessoas circulando (a taxa mínima é de até 40 000 visitantes). É isso mesmo: para entrar em Veneza, só pagando. “Seremos os primeiros do mundo a realizar esse difícil experimento. Muitos já entendem ser o caminho certo”, disse Brugnaro.
O alcaide ressalta que os visitantes que pernoitam em hotéis do centro já pagam uma taxa turística de 3 a 5 euros e por isso estarão isentos, assim como os moradores locais. A cobrança se limitará aos turistas “pendulares”, aqueles que não dormem na cidade, ou ainda aos que conseguem teto não registrado. A parte mais polêmica do plano, ainda não confirmada, passa pela instalação de catracas em pontos específicos . “Me parece uma medida aceitável, já que chegamos a um ponto em que é difícil até se mover. Uma situação tão grave exige medidas impopulares”, disse a VEJA Claudio Scarpa, diretor da Associação de Hoteleiros Venezianos.
Há quem veja o outro lado da moeda. Giacomo Salerno, pesquisador e ativista do grupo Ocio Venezia, um observatório cívico residencial, considera a medida elitista e inócua. “Não creio que transformar Veneza oficialmente em um parque temático seja compatível com a função urbana de uma cidade”, diz. “É uma forma a mais de fazer caixa, sem impedir que venha mais gente. Veneza não é uma empresa, mas quem a governa a vê como a galinha dos ovos de ouro.” Ele afirma que outros desejados destinos como Roma e Florença também podem vir a adotar medidas extremas.
O overtourism não é exclusividade italiana. Segundo a ONU, o número global de turistas dobrou em quinze anos: chegou a 1,3 bilhão por ano e pode passar de 2 bilhões em 2030. Cidades como Amsterdã e Barcelona já adotaram medidas mais eficazes (e menos polêmicas), como planos de limitação do número de leitos, tanto em hotéis como em locações como o Airbnb. Na capital holandesa, os ônibus de turismo foram banidos de algumas regiões e taxas turísticas em hotéis foram implementadas. Na cidade catalã, cuja presença de turistas cresceu dez vezes em vinte anos, protestos tomaram as ruas. “Não conte a ninguém que passou férias em Barcelona” é um dos irônicos cartazes colados em pontos turísticos como a Sagrada Família. É justo desencorajar a presença de viajantes? A resposta é incerta e o debate está apenas começando.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787