Como concursos de miss tentam se adaptar ao tempo de diversidade
Eles chegam até a abolir a maquiagem e o desfile de maiô
Criados nos anos 1950 por uma marca de maiôs americana como ferramenta para divulgar seus produtos, os concursos de beleza aos poucos foram se disseminando e conquistando público e glamour. Seu objetivo era claro: eleger a mulher mais bonita da cidade, do estado, do país e, no apoteótico final, do planeta. Assim seguiram destemidas, durante mais de duas décadas, as etapas do Miss Universo, Miss Mundo e outras franquias do gênero, sempre focadas na perfeição dos atributos físicos das candidatas.
Eram outros tempos e outro tipo de sociedade, que não via nada demais em moças desfilarem com pouca roupa diante de um júri — pelo contrário, a torcida no momento decisivo equivalia à de uma Copa do Mundo. Mas a roda dos costumes girou e hoje em dia, flechados no peito pelos conceitos de diversidade, empoderamento feminino e desobjetificação, entre outros, os velhos concursos tiveram de se adaptar para não morrer. Sobreviveram, de fato, e até se multiplicaram, entre modalidades especiais para mulheres acima dos 50 anos, participantes plus size, transgênero e pessoas com deficiência, o que apontava, no entanto, para lacunas de representatividade nas franquias tradicionais. Para se atualizarem, os principais concursos anunciaram mudanças que são de fazer Maria Augusta, a mãe de todas as treinadoras de misses nos áureos tempos, se revirar no túmulo.
Em agosto, o Miss Universo, até hoje o mais cobiçado título de beleza, anunciou que, a partir de 2023, abrirá sua passarela para mulheres casadas, divorciadas, grávidas e mães — todas condições proibidas até agora sob a justificativa de que impediam o cumprimento da ocupadíssima agenda da mais bela do planeta. A medida, também adotada por certames no Brasil, pretende pôr fim a polêmicas como a de Brenda Silva, 20 anos. Eleita miss Paraná 2022, franquia da BMW Eventos, a modelo teve de abdicar da coroa ao se descobrir grávida. “É inadmissível limitar as candidatas por seu estado civil ou familiar. As mudanças humanizam as misses. Não somos Barbies”, defende a brasileira Julia Gama, vice-campeã no Miss Universo 2020. O Miss Inglaterra adotou uma etapa sem maquiagem e neste ano Melisa Raouf, 20 anos, foi além: decidiu “abraçar as imperfeições” e dispensar cosméticos até a finalíssima, em 17 de outubro.
E tome mudança. O Miss Mundo, concorrente direto do Universo, há oito anos fincou uma espada na alma dos concursos e aboliu o desfile em trajes de banho por “objetificar o corpo e desafiar tradições culturais”, no que foi seguido por diversas franquias. No Miss Itália 2018, Chiara Bordi cruzou a passarela com uma prótese de perna mecânica e conquistou o terceiro lugar. No mesmo ano, o Miss Espanha coroou pela primeira vez uma mulher transgênero, a modelo Angela Ponce. O Miss Estados Unidos deste ano, realizado na segunda-feira 3, contou com uma candidata do povo indígena Chippewa, SaNoah LaRocque, de Dakota do Norte (ganhou a filipino-americana R’Bonney Gabriel, do Texas).
O primeiro movimento para elevar os propósitos dos concursos foi feito poucos anos após sua criação, com a introdução de entrevistas para avaliar o intelecto e a eloquência das moças — surgiu aí a admiração das misses brasileiras por O Pequeno Príncipe, seu declarado livro de cabeceira. “No início, esses concursos serviam de alavanca ao sucesso em uma época em que a vida das mulheres era muito mais restrita ao âmbito doméstico”, explica a historiadora Ana Maria Colling. Nomes como Sophia Loren, Sharon Stone e Hale Berry, além da brasileira Vera Fischer, tiveram a primeira chance de aparecer sob os holofotes em concursos de miss. Totalmente integrada ao momento atual, que prioriza a “beleza com propósito”, a capixaba Mia Mamede, coroada miss Brasil 2022 em julho, considera sua missão transformar a “antiquada” visão do brasileiro sobre os concursos de beleza. “A miss do século XXI não é uma modelo, é uma comunicadora, quase uma diplomata do seu país”, ensina.
Além de faixa e coroa, um atrativo dos certames são os prêmios em dinheiro, que chegam a 50 000 reais nos concursos nacionais e batem em 250 000 dólares nos internacionais. Transmitidas por canais de TV por assinatura e plataformas de streaming, as competições mais importantes chegam a 190 países e 500 milhões de espectadores — o Miss Universo (franquia que até 2015 era propriedade de Donald Trump) detém a terceira maior audiência entre programas internacionais. Detalhe: em meio a toda a adequação aos novos tempos, as misses vencedoras continuam as mesmas — altas, magras e jovens.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810