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Como as novas gerações estão abraçando formas diferentes de amar

A ideia das almas que se completam, alicerce do amor romântico, deixou de fazer sentido para os mais jovens

Por Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 12h41 - Publicado em 11 fev 2022, 06h00

Na Idade Média, o enlace amoroso entre um cavaleiro inglês afeito a caçar dragões e uma princesa irlandesa encarcerada em um castelo fascinava toda a Europa. A lenda de Tristão e Isolda sacudiu as sociedades ao tratar de uma paixão arrebatadora — de fim trágico, aliás — numa época de casamentos movidos por interesses políticos em que a única devoção possível era a Deus. Ali estava posta uma nova ideia, a do amor romântico, que foi se disseminando conforme o mundo girava. O matrimônio alimentado por sentimento puro e verdadeiro viria a se consolidar com a formação do núcleo familiar tal qual o conhecemos (pai, mãe e filho), lá se vão dois séculos. Muito romance apimentou a literatura, o teatro, o cinema e a publicidade, que fizeram o conceito circular em escala planetária. Só que a roda da mudança não para e eis que as novas gerações, que valorizam suas individualidades como nenhuma outra, não buscam mais a cara-metade que as completa, mas relações livres e flexíveis, infinitas enquanto durarem. “A fusão de almas, que prega que dois se transformam em um só, não faz mais sentido para boa parcela dos jovens de hoje”, diz a psicóloga Regina Navarro Lins, autora do livro Novas Formas de Amar.

SÓ E BEM ACOMPANHADO - O publicitário Lucas Villela, 27 anos, recém saiu da casa dos pais e curte a vida-solo. Um relacionamento sério não está no rol de prioridades. “A família diz que é hora de namorar, mas me sinto bem comigo mesmo”, afirma -
SÓ E BEM ACOMPANHADO – O publicitário Lucas Villela, 27 anos, recém saiu da casa dos pais e curte a vida-solo. Um relacionamento sério não está no rol de prioridades. “A família diz que é hora de namorar, mas me sinto bem comigo mesmo”, afirma – (./Arquivo pessoal)

O projeto de deixar lado a lado as escovas de dentes, potente em um passado não tão longínquo assim, não está mais no topo da lista de prioridades dos jovens adultos justamente na fase da vida em que eles costumavam namorar, noivar, casar. Um levantamento do braço de pesquisas do grupo Vice observou o fenômeno, entre pessoas dos 20 aos 40 anos, nos Estados Unidos e no Reino Unido: de cada dez entrevistados, apenas um estava em uma relação séria — e a maioria, satisfeita com a solteirice, queria ficar exatamente desse jeito. Para 55%, subir no altar, então, nem pensar, de acordo com outro estudo, conduzido pelo Ashley Madison, um dos maiores sites de relacionamento do mundo. Os antigos pilares também balançam no Brasil, onde só em 2020 o número de casamentos caiu a um ritmo de 26%, conforme aponta o IBGE. Os que trocam alianças têm gradativamente permanecido menos tempo com elas no dedo — o período médio de uma união no país recuou de dezessete para treze anos em uma década. Aos 27, o publicitário Lucas Villela nunca namorou para valer e não pretende se amarrar tão cedo, o que está longe de ser uma raridade em seu grupo de amigos. “Sou superbem resolvido com a solteirice”, diz, seguro de si.

Não que a luz de velas, o buquê de flores e as viagens a dois tenham sido varridos do mapa amoroso. E, sim, os encontros podem se desdobrar em algo mais duradouro. A diferença é que esse não é mais um objetivo em si. Também foi chacoalhado o modelo clássico de repartir todos os escaninhos da existência com alguém. As sementes desse pensamento tão dominante nas jovens cabeças do século XXI se encontram nos anos de 1960, com o advento da pílula e da contracultura, que precipitaram uma radical reflexão sobre a fórmula única e tradicional da relação afetiva, com a qual alguns então romperam. Na década de 90, o sociólogo britânico Anthony Giddens apontou para o movimento que se aprofundava, ao qual chamou de “transformação da intimidade”, título de um de seus livros. Muitos tipos de arranjo cabem aí, inclusive os relacionamentos abertos, não exclusivos. A ideia da finitude é outra que se faz presente sem o peso de antes. “Quero viver intensamente cada relação e me sentir livre para escolher o que é melhor para mim. Não precisa ser para sempre”, sintetiza a especialista em marketing Ana Luisa Lopes, 26 anos, que se sente “fiel a si mesma”.

GUINADA RADICAL - Depois de seis anos comprometida, a estudante de psicologia Ana Carolina Matt, 23, achava que estava se pondo de lado. Terminou o namoro, mudou de cidade e está bem com a sacudida. “Eu me priorizei”, resume -
GUINADA RADICAL – Depois de seis anos comprometida, a estudante de psicologia Ana Carolina Matt, 23, achava que estava se pondo de lado. Terminou o namoro, mudou de cidade e está bem com a sacudida. “Eu me priorizei”, resume – (./Arquivo pessoal)
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Foi no século XII que o espírito do amor romântico ganhou impulso na voz dos trovadores, músicos egressos do Sul da França, que com poesias docemente cantadas veneravam a mulher amada. E o movimento germinou Europa afora. Pois se há muito de construção social na ideia das almas gêmeas, o ato de apaixonar-se é inerente à condição humana. A ciência já desvendou o processo em que o cérebro recebe uma enxurrada de hormônios cada vez que o interesse por alguém se anuncia. O cortisol, ligado ao estresse, pode desencadear sensações de taquicardia e sudorese, enquanto a ocitocina, responsável pela sensação de apego, funciona como a flecha do Cupido. As conexões neurais, embaladas pela dopamina, também se intensificam, fazendo com que o alvo do desejo não abandone a mente. “O amor age no sistema de recompensas e ativa o mesmo mecanismo que nos leva a procurar comida e água quando estamos com fome ou sede”, explica a neurocientista Lucy Brown, do Albert Einstein College of Medicine, de Nova York. Mas ela lembra que, embora tais efeitos possam ser duradouros, e muitas vezes o são, isso não impede que se manifestem por uma outra pessoa ao mesmo tempo, sem que a chama necessariamente se apague pela primeira. É uma característica humana que as novas gerações abraçam de maneira mais visível e livre.

ADEUS, SUSPIROS - O auge do romantismo em Tristão e Isolda (à esq.), afeto no século XIX (ao alto, à dir.) e o amor de Hollywood: ideal fora de moda -
ADEUS, SUSPIROS - O auge do romantismo em Tristão e Isolda (à esq.), afeto no século XIX (ao alto, à dir.) e o amor de Hollywood: ideal fora de moda – (John William Waterhouse; John William Waterhouse; MGM Pictures/Corbis/Getty Images)

Uma marca dos jovens hoje é não dar espaço à banalização do cotidiano, quando a rotina naturalmente se impõe. “O tempo faz aflorar qualidades e defeitos, e a fantasia cai por terra, impondo os desafios da convivência”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, da USP. Isso traz graus diversos de tédio e certa sensação de paralisia. É esse desdobramento, justamente, que um grupo crescente não enxerga mais como um destino inescapável, sentindo-se à vontade para tocar na ferida, propor novos arranjos ou desembarcar do relacionamento. Durante a pandemia, a estudante de psicologia Ana Carolina Matt, 23 anos, viu-se estagnada no dia a dia ao lado do namorado, na Bahia. Veio então a revolução. Ela terminou com ele e regressou ao Rio, para onde transferiu a faculdade. “Foi como se um pedaço de mim tivesse ressurgido”, conta. Não desistiu da ideia do amor, mas reafirma a cartilha que mais gente de sua faixa etária professa: diferentes amores se encaixam em fases distintas da vida e há momentos em que estar sozinho não tem preço.

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Em Modernidade Líquida, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamava a atenção, às vésperas do século XXI, para os elos sem tantas amarras, mais fluidos, que as pessoas começavam a manter em todas as esferas: trabalho, casa, relacionamentos. Os jovens de hoje botaram tintas berrantes no fenômeno, inquietando-se com longos períodos de estabilidade e buscando a mudança constante. “Não quero me comprometer com ninguém tão cedo, estou gostando de estar com os amigos e comigo mesma”, garante a assistente administrativa Láyra Sthefany, 23 anos, que namorou durante sete, casou-se e separou-se depois de um ano. Sua geração tem a cabeça pragmática e não é dada a idealizar os enlaces afetivos. Para essa turma, o fim do amor romântico pode ser igualmente — ou mais — feliz.

Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776

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