Choque de gerações marca a chegada dos mais jovens ao mercado de trabalho
A visão da Geração Z, para quem a vida não gira em torno da carreira, não raro leva a colisões com mais velhos. E isso pode ser bom para todos
Foi no século XIX que o vocábulo geração começou a circular em rodas intelectuais voltadaspara a ideia de desvendar as mudanças na sociedade sob o ângulo das camadas etárias. Em 1991, a divisão da população em escaninhos demarcados pela idade se consolidou de vez com o impulso do best-seller Gerações, dos americanos Neil Howe e William Strauss. Sabidamente, esses compartimentos contêm simplificações, mas espelham também o indivíduo em seu tempo e em meio a suas circunstâncias. Os chamados baby boomers, nascidos em massa no otimista cenário que sucedeu a Segunda Guerra, partiram para a vida movidos pela busca de um terreno firme que os pais não tiveram — algo que se refletiu, em algum grau, nos que vieram depois. Na vez dos millennials, aqueles chegados ao mundo até 1996, uma crise financeira abateu o globo, engolindo as chances dos que estreavam no mercado, que passaram então a valorizar as vagas conquistadas mais tarde.
Já num período de bonança e oportunidades, eis que aparece em cena a geração Z, jovens com um elo mais leve com o trabalho, um setor de sua existência que nem de longe ocupa o protagonismo desfrutado entre as turmas mais velhas. É natural que as acentuadas diferenças de perspectiva desse grupo, hoje majoritariamente na casa dos 20 e poucos anos, provoquem choques com colegas de outras eras, como enfatiza o recém-lançado The Future-Proof Career, da escritora americana Isabel Berwick, que aborda justamente os aspectos que mais alimentam os conflitos geracionais nas empresas. “A geração Z procura equilibrar trabalho e vida pessoal e estabelece limites claros para os chefes. É um desafio para o mundo do trabalho conseguir lidar com essas novas demandas”, disse Berwick a VEJA. Quando eles exageram, ressalta a autora, os embates se agravam.
O livro elenca alguns traços dos jovens Z, já mapeados por especialistas, que costumam atiçar as labaredas no ambiente corporativo — a começar pela própria definição de sucesso (veja no quadro). Para o pessoal pré-geração Z, há o claro objetivo de ser reconhecido, escalar a hierarquia e ganhar mais, ainda que isso envolva jornadas esticadas e disponibilidade para entrar em campo a qualquer hora. No caso da ala Z, a busca de um propósito no que fazem se sobrepõe ao crescimento. “Meu desejo é estar num lugar confortável e atraente da profissão, mas é no equilíbrio entre as várias áreas da vida que vejo o sucesso”, afirma a especialista em marketing Dora Feliz, 21 anos, que frequentemente diverge dos veteranos à sua volta.
O exacerbado desejo por um dia a dia que se reveze entre trabalho e lazer faz com que muita gente dessa jovem banda populacional prefira até não chegar ao topo. De acordo com a plataforma internacional Visier, apenas 38% cogitam se tornar gestores — a maior parte não quer abrir mão de tanto tempo nem se arriscar numa zona de alto estresse. Tal mentalidade, chamada de quiet ambition (algo como ambição tranquila), é alvo de debates em companhias que temem a escassez de líderes mais adiante. Segundo um levantamento da Cia de Talentos, especializada no recrutamento de jovens, que examinou as prioridades entre milhares de recém-formados, 56% mencionam saúde física, emocional e mental, 14% citam o relacionamento familiar, 11% a segurança financeira, e não mais do que 10% põem a carreira em primeiro lugar. Muitas colisões geracionais derivam dessa escala de valores. “Quando percebo que os mais novos saem assim que dá a hora do fim do expediente, como se estivessem esperando por isso, ainda me surpreendo. Na minha geração, sempre foi diferente, o que acho errado”, diz o gerente financeiro Felipe Vinge, 44 anos, que reconhece também aprender com eles: “Comecei a prestar mais atenção à vida fora do escritório”.
Transformações que chacoalharam o globo, como o avanço das mulheres no mercado de trabalho e a reformulação do ideal de família, ajudam a entender o caldeirão em que fervilha o pensamento da GenZ. Não faz muito tempo que, nem bem ingressava na fase adulta, a pessoa já casava e tinha filhos. Agarrar-se a um emprego fixo era aí essencial para manter a estrutura. Mas, inseridas que estão em suas carreiras, as mulheres agora adiam a gravidez, e uma parcela nem mãe quer ser. “Quem não tem dependentes se sente livre para fazer escolhas e revela mais desapego e flexibilidade”, explica Renato Noguera, professor de filosofia da Universidade Federal Rural, no Rio de Janeiro. É sob essa moldura que os jovens desafiam a hierarquia, não se acanham ao pedir aumento de salário e encaram a troca de emprego sem peso.
A pandemia, que pôs do avesso o mundo do trabalho, reforçou, sobretudo entre funcionários da geração Z, a necessidade de mais maleabilidade em pilares antes bem estabelecidos. O que eles mais querem agora é mesclar o modo presencial com um naco de produção a distância e vão atrás desse modelo. Adepto do anywhere office, mais uma dessas expressões em inglês que circulam na vida corporativa, o estudante de economia Guilherme Carreira, 23 anos, é como outros de sua geração, que aspiram poder trabalhar de qualquer canto do planeta. Ele, que já fez reuniões e relatórios na serra e na praia, garante que em nada atrapalha e, às vezes, até ajuda. “Não me sinto vigiado, o que me estimula e deixa engajado”, fala, bem ao estilo Z.
Os jovens de hoje, que têm o celular como extensão do próprio braço e vivem conectados, demonstram mais dificuldade ao ingressar num ambiente onde sua tão cultivada individualidade precisa se amoldar a um conjunto de regras e ao trabalho em equipe. Nessa raia, os mais velhos já acumularam conhecimento abundante. “Eles questionam tudo, então explico que há princípios que devem ser seguidos por todos”, conta Patrícia Maia, 40 anos, vendedora de uma grife de luxo no Rio, lembrando que certa vez uma menina resistiu a usar o uniforme da loja. Esse grupo também não é afeito a atender ligações — funciona melhor via mensagens. “A geração Z procura diluir fronteiras hierárquicas e formalidades”, avalia Paula Esteves, diretora da Associação Brasileira de RH, à frente da Cia de Talentos.
As questões postas à mesa por essa turma provocadora acaba sendo benéfica às empresas, como mostra um estudo da Society for Human Resource Management, associação global de recursos humanos. A pesquisa identificou justamente na diversidade etária um dos fatores que contribuem para elevar a produtividade, estimulando a inovação e o aprendizado mútuo. Para além dos estranhamentos de parte a parte, o choque de gerações, ao final, fomenta reflexões não apenas sobre a relação com trabalho, mas em torno de valores e do próprio modo de viver. E isso enriquece a todos.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893