Chips para monitorar os filhos: um movimento em alta que esconde riscos
A tecnologia está se disseminando — mas há no gesto, legítimo, o perigo de podar a independência vital para o crescimento

É o melhor dos mundos, é o pior dos mundos — mas convém evitar exageros. Do casamento dos avanços da tecnologia com o horror da insegurança nas ruas, brotou um comportamento que traduz o nosso tempo: os pais a monitorar os filhos como se rastreassem malas ou encomendas expressas. Na tela do smartphone, um pontinho azul indica o trajeto da criança entre a escola e a aula de natação, além de eventuais desvios de rota. A vigilância infantil eletrônica — evento que ocupava a imaginação de escritores de ficção científica — ganhou ares de novidade, um quê de brutal realidade, e não para de crescer. De pulseiras com GPS a tênis com compartimentos secretos para chips, o mercado oferece soluções cada vez mais sofisticadas, e nem tão caras assim, para acompanhar, em tempo real, o vaivém da meninada (veja o quadro), como se a observação remota, na palma da mão, aplacasse todos os receios.

Não há estatística totalmente confiável, mas há indícios espantosos. Houve, na França, nos últimos meses, crescimento de 30% na compra de tags digitais. É dado que acompanha as más notícias. As vendas cresceram depois de uma sucessão de estupros e assassinatos entre franceses que mal haviam entrado na adolescência. No Brasil, não seria exagero dizer que a bisbilhotagem, chamemos assim, acompanha estatística dolorosa. O país registrou 90 256 casos de desaparecimento de menores de 0 a 17 anos entre 2021 e abril de 2025, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), os mais recentes tabulados. Os números apontam uma média de 57 desaparecimentos por dia nessa faixa etária. Por óbvio, as traquitanas não representam certeza de localização, mas são um passo e alguma garantia de tranquilidade, ainda que tímida. “O acompanhamento a distância, para além do conforto psicológico que oferece, garante informação em tempo real, o que, em situações de emergência, pode até salvar vidas”, diz Arthur Igreja, especialista em tecnologia e inovação.
O rastreamento é, enfim, reflexo natural de quem já passou medo. O empresário e criador de conteúdo digital Thiago Dunker, ex-participante do reality show Ilhados com a Sogra, tomou um susto de acelerar o coração. Em viagem à Flórida com a família, perdeu de vista a filha, de 10 anos, em um outlet lotado, depois de a menina discutir com a irmã de 7 anos. “Foram só dois minutos, mas pareceram uma eternidade”, lembra Dunker. Quando foi encontrada, a menina estava trancada num provador. Naquele momento, ele logo pensou em algo que tivesse evitado o estresse, e esse algo estava à disposição nas lojas. Hoje, as meninas usam AirTags, pequenas etiquetas de acesso Bluetooth conectadas à rede de iPhones, da Apple. Os localizadores ficam presos por uma fitinha no pulso das crianças. De longe, são discretos. De perto, parecem relógios divertidos. “Não é algo do dia a dia, mas em viagens e lugares muito cheios dá uma tranquilidade enorme”, diz o pai. “O objetivo é dar liberdade para elas e segurança para nós, adultos.”

A onda se expande. Thaís Giraldelli, estrategista da indústria de beleza e mãe de duas meninas, uma de 10 e outra de 16 anos, incorporou o rastreamento à rotina. “Comecei a usar o aplicativo Life360 por inquietação normal de mãe”, diz ela. “Queria saber se chegaram bem à escola, se o transporte atrasou. O aplicativo me trouxe uma paz que nenhuma ligação telefônica daria.” No entanto, a transparência é regra na casa: as filhas sabem que são monitoradas e encaram o gesto com naturalidade. A mais velha, segundo a mãe, até gosta da supervisão e, às vezes, usa o aplicativo a seu favor, como argumento quando é proibida pela mãe de ir a algum lugar. “No fim, o rastreador GPS até se tornou um ponto de confiança na família”, diz Thaís. Mesmo assim, quando fizerem 18 anos, a mãe pretende desligar o recurso. “A ideia nunca foi controlar, e sim proteger até o momento certo”, afirma.
Liberdade versus controle — há um imenso embate em torno do patrulhamento moderno. Dito de outro modo: quando o zelo vira excesso, dá-se um problema, porque a independência de quem está crescendo, para descobrir a vida, é freada. Que mal há, por exemplo, em manter um hábito que vigora na maioria dos centros urbanos, o de deixar meninas e meninos andando em shoppings, sozinhos. É melhor, do ponto de vista educativo, do que o controle a distância. “Quando uma mãe e um pai dizem: ‘Deixo você sair, mas rastreando’, ensina obediência, não responsabilidade”, afirma a psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky, colunista do site de VEJA. “É postura ruim, porque o papel paterno é ajudar os filhos a tomar decisões, não a viver sob supervisão.”
Deve-se, com veemência, respeitar o cuidado dos pais e a intenção amorosa de saber por onde andam os filhos, especialmente quando a “espionagem” é anunciada e combinada. Tudo muito bonito, mas… a vigilância contínua pode ter efeitos psicológicos profundos, pois a privacidade é fundamental para os seres humanos, especialmente quando deixam a infância para a idade adulta. É nessa fase que se formam identidade e autocontrole. “Quando um jovem cresce acreditando que é normal ser monitorado, ele perde a noção de limite e o medo passa a ocupar o lugar da confiança”, diz Ilana. A consequência é uma geração que, de alguma maneira, pode vir a amadurecer mais lentamente. A onipresença acaba por criar filhos ansiosos, prolongando a adolescência. Há um outro nó, segundo especialistas em comportamento: a ansiedade é contagiosa. Quando os pais vivem em estado de alerta, os filhos aprendem a viver assim também.

Há, ainda, um obstáculo legal que não pode ser desdenhado. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impõe regras específicas para o tratamento de informações de crianças e adolescentes, exigindo consentimento explícito dos responsáveis e finalidade restrita ao interesse da segurança. Embora a lei não classifique a localização como “dado sensível”, ela é considerada uma informação de alto risco, sujeita a proteção reforçada. Ou seja, ao mesmo tempo que trazem claros benefícios, as tecnologias exigem cautela — o compartilhamento indevido ou o armazenamento excessivo de dados pode configurar violação à privacidade, passível de sanções. É preciso atenção às permissões concedidas, aos aplicativos utilizados e à forma como as informações são armazenadas. Um vazamento ou uma invasão de conta pode pôr em risco justamente quem se queria proteger. É o melhor dos mundos, o pior dos mundos.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966