Carta ao Leitor: A força feminina
No emprego, na cama, no analista, em seu próprio imaginário ou nas cifras oficiais, a mulher brasileira já não é mais a mesma
Um olhar histórico para o cotidiano é sempre bom caminho para compreender as mudanças da sociedade brasileira ao longo do tempo. Recém-casado com Lindaura, Noel Rosa compôs, em 1936, um samba que viria a ser sua única letra para a esposa. Não eram exatamente rimas de poeta apaixonado. Você Vai Se Quiser é uma queixa mal-humorada contra o desejo de sua companheira de arranjar emprego para diminuir as dificuldades financeiras da casa: “Todo cargo masculino / Desde grande ao pequenino / Hoje em dia é pra mulher / por causa dos palhaços / Ela esquece que tem braços / Nem cozinhar ela quer / Você vai se quiser”. Lindaura não foi. Hoje, iria — ou certamente brigaria para ir. Os quase noventa anos entre os rabiscos de Noel e a realidade de 2025 revelam extraordinários avanços na condição feminina, ainda que muita estrada precise ser percorrida e a desigualdade seja uma chaga. Dados de 2024 do IBGE mostram que 52,8% delas compõem o mercado de trabalho — ante 72,6% dos homens. Do ponto de vista salarial, há incômoda discrepância. Profissionais do gênero feminino em cargos de chefia tiveram rendimento médio de 6 600 reais, 21% abaixo do que os homens ganharam, o equivalente a 8 378 reais.
Há, contudo, um saudável e necessário movimento de transformação. Os humores mudaram e já não se aceitam Lindauras que respondam caladas aos anseios do cônjuge — embora, reafirme-se com veemência, seja preciso ainda pôr os pares em real igualdade. Reportagem da edição ilumina essa revolução silenciosa, sem as bandeiras dos anos 1960, sem a estridência daquele tempo, mas com os pés no chão. As personagens que a compõem estão ancoradas em um levantamento de Felipe Nunes, do instituto de pesquisas Quaest, que resultou no livro O Brasil no Espelho. A estatística diz muita coisa: 97% das entrevistadas afirmam precisar trabalhar para ter o próprio dinheiro; 81% querem ser empreendedoras; 67% não acham que precisam ter filhos para se sentirem realizadas; 62% não seguem as normas tradicionais de feminilidade; e 49% dos lares já contam com elas como as principais provedoras. Noventa e três anos depois de adquirir cidadania plena com direito ao voto, em 1932, a mulher brasileira sinaliza para si mesma e para quem estiver a seu lado que anseia por espaço. Não faz mais nenhum sentido a ideia do modelo de “dona de casa, a rainha improdutiva do lar”, imagem criada na Europa em meados do século XIX. No emprego, na cozinha, na parada de ônibus, na cama, no analista, ao volante, em seu próprio imaginário ou nas cifras oficiais, a mulher brasileira já não é mais a mesma.
VEJA, ao longo de seus 57 anos de trajetória, teve sempre o cuidado de olhar para o tema com informação rigorosa, em sucessivas reportagens, e uma missão: tirar da frente as pedras da misoginia, ao apontar os erros e implodir a torre de marfim onde se instalou o universo masculino. Vale sempre lembrar uma das frases de Simone de Beauvoir, feminista avant la lettre: “A questão não é que as mulheres simplesmente tirem o poder das mãos dos homens, já que isso não mudaria nada no mundo. É uma questão precisamente de destruir essa noção de poder”.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973
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