Aromas sem gênero: perfumaria derruba barreira entre homens e mulheres
Ganham espaço nas prateleiras os produtos 'genderless', também chamados de compartilháveis.
Construções sociais tendem a sedimentar estereótipos. Há pelo menos oitenta anos, convencionou-se que perfumes femininos eram adocicados e suaves e os masculinos deveriam transmitir a sensação de sobriedade e poder. Notas de rosas seriam, portanto, destinadas às mulheres, enquanto aos homens ficariam ofertados os fundos amadeirados. A verdade é que também na sensibilidade olfativa não há compartimentos onde devam ser armazenados este ou aquele aroma como marca de gênero. Por isso, os perfumes, tal qual a comida, o esporte ou a profissão, são opções individuais cada vez menos pautadas por preceitos que desrespeitam a diversidade entre os indivíduos. A barreira entre o que era classificado como essências de mulher ou de homem se tornou tão fluida quanto as fragrâncias que se dissipam no ar. Dessa forma, ganham espaço nas prateleiras os produtos genderless, ou sem gênero, ou, ainda, chamados de compartilháveis.
Tanto as marcas mais tradicionais quanto a perfumaria de nicho — conduzida por perfumistas independentes — começam a investir com força nesses artigos. Só nos primeiros meses deste ano, duas grandes grifes, Armani e Guerlain, lançaram os seus. A Calvin Klein pôs nas prateleiras o Everyone EDT. Do italiano Armani veio o Indigo Tanzanite, de essência âmbar amadeirada com notas que vão de amêndoa a bergamota e patchouli. A francesa Guerlain apresentou o Nerolia Vetiver de Guerlain, um amadeirado floral almiscarado. A preferência pelas madeiras e pelos almiscarados tem um motivo: são os que mais servem à nova ordem, sem nichos.
As essências compartilháveis são em boa medida as responsáveis pelo reaquecimento do mercado, esmaecido pelos dois anos de isolamento da pandemia. Os números aferidos pela Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos nos primeiros três meses de 2022 são animadores, com crescimento de vendas 9% superior ao registrado no mesmo período em 2021. É interessante saber, no entanto, que a entrada dos produtos no mercado bebe de sua própria longínqua história, como se fosse uma correção. A fragrância das rosas, por exemplo, era profundamente admirada por homens na Índia e depois passou a ser o cheiro que perfumava os banhos romanos, prazer que guerreiros e imperadores desfrutavam docemente. Passou a ser relacionada ao universo feminino em meados do século XX, quando a separação das famílias aromáticas por gênero ocorreu como jogada de publicidade e de marketing, em busca de vendas.
O retorno à liberdade dos aromas, alheia a escaninhos restritos, deve ser festejado não só como um movimento adequado ao seu tempo, mas também por devolver ao ser humano a capacidade de explorar seu incrível sistema olfativo, o mais complexo de todos os que processam os sentidos. O escritor americano Bill Bryson, divulgador científico, lembra em Corpo — Um Guia para Usuários que o olfato é o único dos cinco sentidos básicos não mediado pelo hipotálamo. Quando cheiramos algo, a informação, por motivos que desconhecemos, vai direto ao córtex olfativo, aninhado junto ao hipocampo, onde as memórias são formadas, e alguns neurocientistas acham que isso talvez explique por que certos odores são tão poderosamente evocativos de lembranças. “As misturas de odores originam aromas muito particulares porque partem da sobreposição de fragrâncias ao cheiro natural da pessoa”, diz Leonora Nogueira, curadora de perfumes da Eaux parfums. É química fascinante, ainda mais agora, sem distinção de gênero.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793