Apesar dos preconceitos, adoção por casais gays no Brasil se expande
Fenômeno é avanço notável no terreno das liberdades individuais
Com os ventos da modernidade, o mundo das ideias se arejou e uma pesada nuvem de preconceito em relação ao que escapava a padrões preestabelecidos foi aos poucos se dissipando. Ainda há muito o que caminhar no terreno das escolhas individuais, onde viceja a diversidade, mas cenas como a do professor Luiz Fernando Barros, 45 anos, e do empresário André Rocha, 37, que há tempos sonhavam ser pais, embalando a pequenina Isabela numa maternidade do Rio de Janeiro, são reflexo de um globo em franca transformação, no qual múltiplos arranjos familiares se tornaram cada vez mais frequentes. “Depois que a peguei no colo pela primeira vez, ela nunca mais ficou sozinha. É um amor fulminante”, descreve Luiz, casado desde 2019 com André, justamente quando decidiram adotar a garota, hoje com 5 anos.
Eles compõem um grupo demográfico que ganha vulto, sobretudo na banda ocidental do planeta, e se expande no Brasil — o de casais homossexuais que resolvem encarar a adoção e, assim, formar uma família. Segundo recente levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que esticou a amostra para o conjunto de pessoas que se declaram LGBTQIA+, o contingente de meninos e meninas adotados nesse grupo avançou 186% nos últimos quatro anos, o triplo da população como um todo. É uma subida notável diante de mudanças no tecido social cujas tintas ainda estão frescas. Foi apenas em 2011 que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em votação histórica, a união estável entre indivíduos do mesmo sexo. Passados quatro anos, a corte enfim permitiu que esses casais pudessem adotar, embora entraves judiciais sejam comuns ao longo do percurso. “A falta de uma lei federal clara abre margem para questionamentos e interpretações de tribunal para tribunal”, explica a advogada Vanessa Paiva, especializada em direito da família.
Não são apenas os embolorados labirintos burocráticos que atormentam pares gays na hora de adotar filhos, mas também o caldo de preconceito em que a decisão ainda se encontra imersa. Desde janeiro à espera na fila, por vezes morosa, o engenheiro Carlos Santos, 28 anos, e o marido não se cansam de ouvir comentários que revelam estranhamento quando falam que querem adotar. “Chegam a me perguntar quem vai fazer o papel de mãe”, conta ele, que sente na pele os desdobramentos de um fenômeno já bem digerido em certos círculos, mas mal assimilado em outros, quando não repelido, de forma inaceitável, em rodas de um conservadorismo mais radical. “A visão sobre estes arranjos é cercada de incompreensão”, avalia o antropólogo Lucas Bulgarelli, diretor do Instituto Matizes, voltado para estudos e ações focados na turma LGBTQIA+.
Olhares enviesados, deboche de gente próxima e rejeição — tudo isso mostra que a sociedade está ainda aprendendo a lidar com configurações distintas e que, não raro, a intolerância aflora. E é justamente aí, em algum lugar entre a falta de entendimento e a discriminação, que a criança pode se achar inadequada. “Muitas pensam que o problema está nelas”, resume o psicólogo Hamilton Kida, franco defensor da terapia nesses novos lares em formação — como o da empresária Julimar Xavier, 38 anos, e da analista de sistemas Viviane Angeli, 45, que adotaram Luisa, de 7, e Gabriel, 3. “Cuidar da cabeça com ajuda especializada tem sido fundamental para as crianças”, afirma Julimar, que vê os filhos bem acolhidos nos meios que frequentam.
Várias instituições, sejam elas públicas ou privadas, não estão preparadas para receber essas famílias, o que pode desembocar em constrangimentos. Como inexiste no Brasil uma diretriz clara sobre esses arranjos ditos “não tradicionais”, ocorre de certos lugares, como escolas ou hospitais, acabarem por tratá-los como células transparentes. Pai de Levi, de 1 ano, o administrador Emerson Gonçalves, 51, luta numa unidade de saúde para colocar seu nome, junto ao do marido, na carteira de vacinação do bebê. Por ora, ele consta como “mãe” no documento. “Esse tipo de saia justa é diário. Até no hospital, após o nascimento de Levi, inventaram um nome aleatório de mãe para pendurar na porta do quarto”, lembra Emerson, que enfatiza, porém, como o tempo tem se encarregado de registrar valiosos progressos. “Minha mãe me deu total apoio e meu filho cresce cercado de afeto”, orgulha-se.
Um fator que contribui para fazer a marcha das escolhas individuais se consolidar é o tema ser trazido à luz por gente com visibilidade. Em 2020, o ator Luiz Fernando Guimarães, 74 anos, e o empresário Adriano Medeiros, 50, mudaram o curso da vida, após duas décadas juntos, ao adotar os irmãos Dante, 13, e Olivia, 11. “A gente cuida, se preocupa, vai à escola, reuniões. Eles abriram uma nova fase para mim”, reflete o ator. Há ainda aquela turma que já teve filhos noutra etapa e tem disposição para começar tudo de novo — caso da cantora Daniela Mercury, que, mãe de dois adultos, em 2013 adotou, com a mulher Malu Verçosa, outras três meninas, entre 3 e 13 anos. “Não restringi idade, sexo nem cor da pele. Qualquer criança era bem-vinda”, declarou à época. Esta é, aliás, uma característica que aproxima os casais do mesmo sexo: eles revelam maior flexibilidade diante de diferentes perfis, assinalando poucos filtros dentre as opções no cadastro nacional de adoção.
Embora os avanços sejam palpáveis, abrangendo aí novos protocolos e leis, ainda se observa em um naco considerável do planeta uma fragilidade institucional em torno do assunto. De acordo com a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais, menos de 20% das nações garantem a essas pessoas o direito à adoção e algumas chegam a registrar retrocessos nesse delicado território no qual bandeiras com a coloração da extrema direita são energicamente agitadas. O exemplo mais recente é o da Itália, onde a primeira-ministra Giorgia Meloni vem tentando cercear o que já é para lá de limitado — ali, casais gays só podem adotar no exterior, direito este que Meloni está fazendo de tudo para suprimir. Uma marcha a ré inaceitável, que passa ao largo da ideia fundamental de que família é um conjunto de vínculos de afeto que transcende qualquer fórmula.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920